O tempo e o capitalismo foram implacáveis com Che Guevara. Quase 37 anos depois de sua morte, numa emboscada na Bolívia, o guerrilheiro argentino, um dos líderes da Revolução Cubana, transformou-se numa marca. Che virou Coca-Cola. Deixou as paredes dos quartos dos jovens entusiasmados com sua coragem libertária e invadiu as butiques chiques de Nova York. Virou estampa num biquíni a delinear as curvas de Giselle Bündchen. Perdeu a rebeldia que sacudira os anos 60 do século XX. O novo filme de Walter Salles, Diários de Motocicleta, com estréia prevista no Brasil para o próximo dia 7, devolve a Che o que o consumismo lhe subtraíra: a ideologia. O longa narra a viagem em 1952 do então jovem médico de 23 anos e um amigo bioquímico, Alberto Granado, pela América do Sul. A bordo da Poderosa, uma moto inglesa Norton de 500 cilindradas, eles descobrem o continente que na década seguinte morreria de susto, bala ou vício. É uma comovente travessia de Ernesto pré-Che. Por voltar às raízes do mito, muito antes dele conhecer Fidel e os textos de Karl Marx, é uma homenagem à ética, quase um discurso de pureza. Nas palavras de Walter Salles: ?Diários é um filme a respeito das escolhas políticas e emocionais que fazemos ao longo da vida. Trata também de amizade e solidariedade, de alguém que luta para encontrar seu lugar no mundo.?

Tudo isso é o que desapareceu na medida em que o retrato clássico de Che feito por Alberto Korda em 1960 transformou-se em mera estampa, vazio de idéias. Os indícios desse caminho na contramão, como se Che sumisse no espelho retrovisor de uma moto a toda velocidade, estão em todas as partes. Já apareceu bordado numa bolsa Louis Vuitton levada a tiracolo pela atriz Elizabeth Hurtley ( US$ 4.500 a unidade). Está em camisetas vendidas em Manhattan a mais de US$ 50 e nas araras da C&A no Brasil. A TheCheStore, site na internet criado pelo ítalo-canadense John Trigiani, vende vasta parafernália: camisetas, bonés e chaveiros. Um modelo de camisa com botões em seda, multicolorido, custa US$ 48. ?Muita gente compra meus produtos sem saber quem foi Che, ou o que ele representa?, disse Trigiani à DINHEIRO. ?É um fenômeno que não fica muito longe da adoração pelo Bob Esponja, para citar um exemplo atual.?

Por que tanto fascínio com um rosto? ?A imagem de Che eterniza-
da pela foto de Korda é a personificação de uma virilidade juvenil contra o status quo, não importa qual seja esse status quo?, arrisca Jon Lee Anderson, autor de uma biografia de Ernesto Guevara. O
filme de Walter Salles, candidato à Palma de Ouro em Cannes, é
uma tentativa, ainda que não declarada, de mudar esse cenário.
Por enquanto, tem sido tratado como mais um capítulo do renascimento do interesse por Che. Pode até ser entendido dessa maneira ? mas ajudará a desmontar a imagem comercial do guerrilheiro, de modo a devolvê-lo de onde veio. Não será fácil.
Mas, como dizia o próprio Che, no seu bordão mais repetido, é
preciso endurecer sem jamais perder a ternura.

A HISTÓRIA DE UMA FOTO

ORIGINAL

RETOCADA
O fotógrafo Alberto Korda trabalhava para o semanário cubano Revolución. Em 5 de março de 1960 foi designado a acompanhar um comício em protesto a um atentado que, na véspera, matara 160 pessoas. No palanque em Havana estavam Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre. Che manteve-se o tempo todo ao fundo. Korda passeava a lente de sua Leica quando a imagem do homem pensativo lhe deteve. Fez apenas duas chapas do líder, em 36 dis-
paradas. Os negativos dormitaram num arquivo até 1967, quando o editor italiano Giangiacomo Feltrinelli a resgatou para a capa de um livro. Sugeriu retoques na fotografia. Nascia o pai de todos os pôsteres.

 

CHE CHIC
Os rótulos inspirados na figura melancólica e
utópica de Ernesto Guevara rodaram o mundo

refrigerante e política
Nos anos 70 circularam
camisetas unindo a mais célebre marca americana com o ícone revolucionário cubano

www.thechestore.com
Um site na internet criado por um canadense vende produtos inspirados em Che e na estrela hoje lendária. A boina preta é campeã de vendas

A ARTE POP DE ANDY WARHOL
O americano já tinha pintado
as latas de sopa Campbell?s
e Marilyn. Daí para Guevara
foi um passo muito curto.

BIQUÍNI LATINO-AMERICANO
Nem mesmo o galante Che sonharia pousar numa roupa de praia, da Cia. Marítima, no corpo de Giselle Bündchen. Aconteceu em 2001.

 

VIDA E MORTE

1951: Buenos
Aires (no alto)
1967: Vallegrande (abaixo)
As duas fotos ao lado narram 16 anos de história da América Latina. O Che na varanda da casa dos pais em Buenos Aires, em 1951, dificilmente enxergaria o futuro que lhe alcançou na Bolívia em 1967. O escritor Jorge Castañeda tem uma tese para a explosão do mito: ele cresceu porque Che foi exposto em Vallegrande com barba aparada e cabelos penteados, como um Cristo do Renascimento.

 

?ELA MEXE COM OS NOSSOS CORAÇÕES?

NORTON: Motor forte
A Norton de 500 cilindradas é uma espécie de Che para os amantes da velocidade em duas rodas: é uma lenda que cresce com o tempo. Um modelo de 1949, como o utilizado por Ernesto Guevara e Alberto Granado na travessia pela América do Sul em 1952, vale hoje cerca de R$ 50 mil. ?Ela mexe com nossos corações?, diz o colecionador paulista Walter Aquino. ?As motos faziam ruído de máquina de costura, tec-tec-tec. A Norton inglesa foi a primeira a produzir um som de motor de popa, mais forte, tum-tum-tum. É de emocionar qualquer um?.