29/06/2004 - 7:00
38% do PIB! Funcionando como a senha de uma revolta, a projeção para este ano de uma carga tributária recorde sobre o Produto Interno Bruto está despertando em todo o País o que há muito tempo não se via ? um movimento caudaloso, articulado e consistente de rebelião empresarial. Esta semana, em Brasília, entidades da indústria, comércio e serviço se encontram para deflagrar nos próximos dias uma marcha de protesto sobre a Capital. Em São Paulo, cresce o número de reuniões entre líderes de diferentes setores para a articulação de estratégias de combate à escalada arrecadatória do governo. Da região Sul à Nordeste, um sentimento generalizado de insatisfação une os homens de negócio. Há indignação e raiva. ?Fomos enrolados durante os dois governos de Fernando Henrique e com Lula piorou?, resume o presidente do Sindipeças, Paulo Butori. Ele calcula que metade das 400 empresas de capital nacional do setor estejam em situação pré-falimentar em razão da tributação média de 45% a 48%. ?Lucro? Não sabemos o que é isso há muito tempo?.
Num espinhal de siglas, tributa-se no Brasil ? pesada-
mente ? do lucro aos salários. A empresa brasileira é a que mais paga impostos no mundo. Juntas, as alíquotas da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) fazem as empresas recolher aos chamados cofres públicos até 34% do resultado final de suas operações. Em nenhum outro país do mundo isso ocorre. Os impostos sobre as folhas de salários chegam a 42,1%. Em vários outros países do mundo há impostos sobre salários, mas apenas a alíquota da Dinamarca (43,1%) é superior à brasileira. Compare-se com as da França (26,5%), dos Estados Unidos (24,3%) e do Japão (16,2%). Fica fácil entender a baixa competitividade internacional dos produtos nacionais. Há, no entanto, muito mais. Com uma legislação diferente para cada um dos 27 Estados da federação ? apenas a de São Paulo tem mais de mil artigos ?, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) vai transferir do mundo dos negócios para o setor público este ano cerca de R$ 140 bilhões, com alíquotas que chegam a 33% e, em média, são de 21%. Sob o peso desse tipo de contribuição, o PIB teve uma variação negativa de 0,2% no ano passado, mas a soma das arrecadações federal, estaduais e municipais apresentou um aumento nominal de 13,4%. Fica evidente o processo brutal de transferência de renda da economia real para o Estado ? um modelo que está se acentuando. De maio de 2003 a maio deste ano, a economia cresceu cerca de 2%, mas a arrecadação total de impostos deu um salto de 5,5%. ?Isso demonstra que temos um Estado medieval e concentrador de renda, ao estilo pré-capitalista dos séculos 15 e 16?, define o historiador de economia Jorge Caldeira.
Como pessoa física, o brasileiro desembolsava per capita o equivalente a R$ 700,51 no pagamento em tributos em 1993. No ano passado, recolheu R$ 3.092,47 ? um aumento real de 56,74%, contra apenas 10,8% de crescimento da renda per capita no período. De novo, é a mesma bomba de sucção tirando dinheiro das pessoas para manter o Estado, fazer o superávit e pagar os juros. A sanha arrecadatória está riscando a elegância dos salões, dando lugar ao sincero nervosismo. Na noite da segunda-feira 21, na quatrocentona sala de reuniões do Instituto Fernand Braudel, em São Paulo, o empresário Laurence Pih interrompeu uma debate no qual pontificavam o ex-secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, e o secretário de Fazenda de São Paulo, Eduardo Guardia. ?Não acredito nesses números?, esbravejou Pih, se opondo aos cálculos matemáticos que mostraram um carga tributária de 36,11% sobre o PIB do ano passado. ?Na vida real, deste lado do balcão, é muito mais. Do R$ 1,5 trilhão do PIB brasileiro o setor público está ficando com mais de
R$ 800 bilhões.? Mais tarde, recomposto, Pih falou à DINHEIRO. ?Ser empresário, hoje, é um ato de fé. Vivemos em constante pânico, temendo que uma canetada tributária do governo inviabilize o nosso negócio.?
Para onde quer que se vire, lá estão os impostos emperrando o crescimento da economia. ?Há tantos impostos sobre veículos no Brasil que o cidadão, ao comprar um carro médio, na verdade paga dois: um para ele e outro para o governo?, diz o vice-presidente da General Motors, José Carlos Pinheiro Neto. O brasileiro paga o dobro de impostos do italiano e cinco vezes mais do que o americano na hora de comprar o seu carro. A retração do mercado do consumo, como até mesmo os buro-
cratas conseguem entender, está afastando investimentos produtivos. ?O sistema tributário difícil, burocrático, complexo e extremamente oneroso está afastando novas indústrias do Brasil?, afirma o vice-presidente da Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim), Guilherme Duque Estrada de Moraes. As multinacionais repre-
sentam, hoje, metade dos quase 200 sócios da entidade. ?Poderiam ser muito mais.?
Já não era sem tempo a revolta empresarial brasileira. Por muito menos, na vizinha Argentina uma mobilização semelhante começa a tomar corpo. Lá, números oficiais da Administração Federal de Receitas Públicas deram conta na semana passada que já se paga 21% do PIB em impostos, contra 17% na média da década de 90. E os argentinos estão bem abaixo da capacidade contributiva do país, estimado em 29% do PIB. Nos Estados Unidos, país em que a mobilização empresarial tem caráter permanente, a capacidade contributiva é de 44% do PIB, mas a carga tributária não ultrapassa 29%. Aqui se dá exatamente o contrário. A capacidade contri-
butiva brasileira está calculada hoje em 24% do PIB, mas a carga de impostos está subindo para 38%. Outra inversão é a maneira pela qual se dá a cobrança. Nos Estados Unidos a estrutura de impostos é 70% sobre a renda e o patrimônio e 30% sobre a produção. Aqui, não. As empresas arcam com 70% dos tributos e o patrimônio e a renda pagam apenas 30%. Faz lembrar a história da jabuticaba. Ou só o Brasil sabe fazer ou estamos na contramão do mundo.
As autoridades demonstram que somente na base do grito irão se sensibilizar com a asfixia da atividade empresarial. ?Tudo bem, admito que a carga está no limite e não dá mais para aumentar?, disse o secretário da Receita Federal, Jorge Rachid, ao editor Hugo Studart, da DINHEIRO em Brasília. ?Mas só existem três formas de financiar o Estado: tirar dos pobres através da inflação, arrumar mais dívida externa ou cobrar impostos da sociedade. Só nos restou esta última?, afirmou Rachid. O secretário avisa que está criando uma nova alíquota de imposto de renda para as pessoas físicas, de 35%, mas garante que vai respeitar o combinado entre o governo e os empresários. ?Nosso compromisso é não crescer a relação carga tributária-PIB?. Mas segundo o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT) é exatamente isso que está acontecendo, com a aproximação dos 38% de impostos sobre o PIB. A ironia foi a arma escolhida pelo ministro interino da Fazenda, Bernardo Appy, para rebater esses cálculos. ?Não foi esse mesmo instituto que disse que a carga ficaria em 40%??. O secretário pode rir, mas basta olhar a curva para perceber que é nessa direção que a coisa caminha.
Na história brasileira, o garrote tributário já despertou revoltas de todos os tamanhos. Foi uma derrama ? nome dado pelo Direito português para classificar os impostos baixados para suprir gastos extraordinários da Coroa ? que produziu a Inconfidência Mineira. Em 1792, os portugueses resolveram cobrar de uma só vez os quintos em atraso dos produtos de ouro de Minas Gerais. Contra a medida se levantaram os inconfidentes e o Brasil conheceu seu herói Joaquim José da Silva Xavier. Será que precisamos de um novo Tiradentes?
Colaboraram Eduardo Pincigher, Fabiane Stefano e Rosenildo G. Ferreira