“Uma democracia que não se protege não resiste às pulsões de violência que a insatisfação com os seus métodos, finalidades e modo de ser podem gerar nos seus descontentes.” Com essa frase em defesa da democracia, o procurador-geral da República Paulo Gonet abre a denúncia que enquadrou o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) como líder de uma organização criminosa armada que tentou dar um golpe de Estado após as eleições de 2022.

Ao longo de 272 páginas, o procurador-geral emite inúmeros alertas sobre a gravidade dos fatos investigados. “Esta denúncia retrata acontecimentos de máxima relevância.”

Em uma espécie de preâmbulo, Paulo Gonet antecipa a magnitude das acusações que estavam por vir: “Aqui se relatam fatos protagonizados por um Presidente da República que forma com outros personagens civis e militares organização criminosa estruturada para impedir que o resultado da vontade popular expressa nas eleições presidenciais de 2022 fosse cumprida, implicando a continuidade no Poder sem o assentimento regular do sufrágio universal.”

Ao redigir o documento, Gonet teve um cuidado especial em colocar as acusações em perspectiva. Uma tentativa de conferir à denúncia a seriedade e o distanciamento necessários para dimensionar o risco que Bolsonaro e seus aliados representaram à democracia no Brasil.

“Não há ofensa institucionalmente mais grave à democracia do que a interrupção do processo mesmo de ajustes inerentes ao sistema, pelo impedimento da atuação de qualquer dos Poderes, sobretudo por meio da força, não autorizada constitucionalmente. A gravidade é tal que, diferentemente do que ocorre em outras hipóteses de dissonância constitucional, nesse caso, o legislador tipifica a conduta como crime. Como também o faz quando o atentado baseado em violência se faz contra o regime democrático em si.”

A denúncia conecta diferentes episódios que culminaram no plano golpista e nos atos de vandalismo do dia 8 de Janeiro. Os fatos são encadeados a partir de 2021, marco do discurso de ruptura institucional adotado por Bolsonaro, até a invasão da Praça dos Três Poderes, o clímax do movimento golpista, segundo a linha do tempo traçada por Gonet. “Fatos atordoantes foram descobertos na investigação dos acontecimentos que se seguiram ao resultado das eleições.”

O procurador-geral se preocupa em repreender o comportamento do ex-presidente. O cargo, alerta Gonet, não blinda Bolsonaro das responsabilidades. E o fato de não estar mais no exercício da Presidência não torna os crimes menos graves, defende o PGR.

Os advogados de Bolsonaro negam que tenha envolvimento nos crimes elencados na denúncia. A defesa afirma que as acusações são “ineptas”, “precárias” e “incoerentes”.

Paulo Gonet também buscou evitar a contaminação das acusações pelos embates políticos. O esforço foi demonstrar que Bolsonaro e seus aliados não atentaram contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), mas sim contra a democracia. A mensagem foi clara: a retórica golpista não é um instrumento legítimo de disputa política.

“Num regime republicano, todos são aptos a serem responsabilizados por condutas penalmente tipificadas. O Presidente da República não foge a essa regra, ainda que, certamente, uma acusação penal contra o Chefe de Estado, mesmo que ele haja deixado o cargo, não possa ser trivializada como instrumento de continuidade da disputa política, por mais acre que se tenha tornado o ambiente partidário”, escreveu Gonet.

O procurador-geral também crava que, mesmo frustrada, a tentativa de golpe é crime. “A decisão dos generais, especialmente dos que comandavam Regiões, e do Comandante do Exército de se manterem no seu papel constitucional foi determinante para que o golpe, mesmo tentado, mesmo posto em curso, não prosperasse. Mas, crime houve”, defende Gonet. “A tentativa é o fato punível descrito na lei.”