O número de empresas em processo de Recuperação Judicial (RJ) no Brasil bateu recorde no primeiro trimestre de 2025, com 4,8 mil companhias em procedimento, alta de 16% em relação ao mesmo período do ano anterior. Segundo levantamento da RGF & Associados, publicado pelo Valor Econômico, os pedidos se concentram na indústria, especialmente nos setores têxtil, sucroalcooleiro, de laticínios e frigoríficos, que juntos somam 1.112 processos.

O cenário é reflexo direto da elevação da taxa Selic, que compromete o fluxo de caixa das empresas e limita o acesso ao crédito. A estimativa é que o número ultrapasse 5 mil empresas nos próximos meses. Mas o volume de casos evidencia, também, que o uso sistemático desse mecanismo como canal de sobrevivência de empresas viáveis alimenta a milionária indústria da recuperação judicial, que se beneficia da lentidão e a fragilidade normativa do sistema.

A estrutura atual do sistema falimentar no Brasil tem se revelado um campo fértil para a atuação de agentes econômicos ligados ao processo judicial — como administradores judiciais (AJs) e escritórios de advocacia — que se beneficiam da morosidade e da falta de regulação clara na contratação e remuneração de serviços auxiliares. O aumento do número de processos que se arrastam por anos tem levantado preocupações sobre possíveis irregularidades e abusos. Uma inspeção recente determinada pela Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) nas Varas Empresariais investigou dezenas de casos e a proximidade de juízes, AJs e escritórios especializados.

A Lei 11.101/2005 é apontada por especialistas como criadora de um mercado com “rentabilidade inigualável” para escritórios especializados em administração judicial. Os honorários fixados pelos juízes são geralmente quantias vultosas, muitas vezes balizadas em percentual do passivo total da empresa em falência ou recuperação. Com processos recentes envolvendo dívidas bilionárias, as nomeações para o cargo de administrador judicial se tornaram extremamente concorridas, com a disputa pela preferência dos juízes, configurando intensa competição entre os profissionais da área.

Do Brasil para a Flórida

Valendo-se do tempo excessivo das RJs e das naturais deficiências contábeis das empresas em crise, advogados especializados vem se valendo de maneira cada vez mais recorrente de instrumentos para responsabilizar terceiros que se relacionaram com a empresa antes da falência, por meio do uso do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ).

Um dos casos em que esse tema é debatido envolve a JBS. A companhia dos irmãos Joesley e Wesley Batista obteve vitória parcial no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), ao impedir que fosse citada para responder a uma ação movida nos Estados Unidos no âmbito da recuperação judicial da Tinto Holding — antiga empresa do Grupo Bertin, hoje Grupo Heber. Contudo, o alívio durou pouco: o Superior Tribunal de Justiça (STJ) revogou a liminar, permitindo a continuidade da ação perante a Corte do Distrito Sul da Flórida. O episódio desperta preocupação de como decisões das cortes superiores, como o STJ, transferem a legitimidade da Justiça brasileira em processos de RJ para o exterior.

No centro dessa discussão sobre remuneração e morosidade está ainda a contratação de prestadores de serviços pelos AJ, um tema que carece de regulação e pode desincentivar investidores. No feriado de 1º de maio, também na Flórida, o Instituto Brasileiro da Insolvência (IBAJUD) com o apoio da University of Miami e a Escola de Negócios e Seguros (ENS) realizou o Fórum Brasil-EUA de Insolvência Empresarial foi realizado no Hotel Four Seasons de Miami, tendo múltiplos patrocinadores, entre eles o escritório Duarte Forssell Advogados, com forte atuação em processos de RJ.

O evento contou com a presença de ministros do Superior Tribunal de Justiça, autoridades, especialistas e serviu como ponto de encontro entre os principais nomes do setor, num momento em que o debate sobre a regulamentação do sistema ganha tração. Questionado pela reportagem sobre o patrocínio e se via algum conflito de interesses no apoio ao evento, o advogado Marcelo Soares, sócio da Duarte Forsell, respondeu via email que: “Não. O evento, realizado para fins acadêmicos, contou com a presença de professores, autoridades e profissionais de várias nacionalidades, com vistas ao aprimoramento do regime jurídico da insolvência em ambos os países”.

O escritório esteve envolvido no caso da falência da Tinto Holding e da Sam Indústrias, em que obteve decisão favorável do STJ garantindo honorários de 30% sobre valores recuperados, mesmo com voto vencido do Ministro Humberto Martins classificando o percentual como ‘exorbitante’. A atuação se repete em outros casos, como na falência da Usina Floralco, onde houve questionamento no CNJ sobre sua contratação por solicitação direta do administrador judicial.

Diante desse cenário, o governo federal propôs o PL 3/2024, que busca reformar a Lei 11.101/2005 e reduzir pela metade a duração dos processos de recuperação e falência, hoje estimados em dez anos. A proposta já passou pela Câmara e aguarda relatoria no Senado. Especialistas, no entanto, são céticos quanto ao impacto da medida isolada. Sem enfrentar os problemas estruturais da ausência de regulação sobre honorários, contratação de prestadores e critérios objetivos para nomeação de AJs, a reforma pode manter o sistema vulnerável à insegurança jurídica.

Casos históricos, como o da falência da Fazendas Reunidas Boi Gordo, iniciada em 2004 e ainda em andamento em 2024, exemplificam os efeitos dessa lentidão crônica. A ausência de critérios claros e o uso do sistema para bloqueios patrimoniais de terceiros, sem contraditório efetivo, afastam investidores e agravam o custo da crise.

O aumento dos pedidos de recuperação judicial não é apenas sintoma da fragilidade econômica do país — é reflexo também de um sistema de insolvência que precisa urgentemente ser modernizado, regulado e blindado contra interesses privados desvirtuados de sua finalidade pública. A atuação estratégica de determinados atores, somada à inércia regulatória e à morosidade judicial, transforma o instituto em campo de batalha jurídica e econômica, com riscos concretos à segurança jurídica e à confiança dos agentes econômicos.