A primeira fase da regulamentação da reforma tributária aprovada em 2023 chega a uma semana decisiva com uma série de indefinições. A chamada Comissão de Sistematização (Cosist), que vai coordenar os 19 grupos técnicos sobre o tema, iniciou uma força-tarefa com o objetivo de concluir as propostas antes da Páscoa. Ontem, o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), disse que a regulamentação da reforma neste ano só depende do ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

Uma vez finalizados pela comissão, os anteprojetos de lei serão entregues à Fazenda e depois encaminhados ao Congresso. Na segunda-feira, 18, Haddad havia dito que enviará dois projetos. “Ele (Haddad) tem de mandar a regulamentação, ninguém tem um relator antes do texto”, disse Lira, nesta terça, 19.

Entre os pontos considerados polêmicos – e que vêm mobilizando tributaristas, governo e empresários -, está o Imposto Seletivo, conhecido como “imposto do pecado”, a ser cobrado sobre itens considerados nocivos à saúde ou ao ambiente. A indústria de alimentos ultraprocessados tenta se blindar contra o novo tributo, enquanto as cadeias de petróleo e mineração estão em estado de alerta.

Há ainda embates sobre a composição da cesta básica nacional, que terá alíquota zero do novo Imposto sobre Valor Agregado (o IVA, que unificará cinco tributos), e sobre os regimes específicos, que se multiplicaram em meio às votações na Câmara e no Senado no ano passado.

São mais de 70 pontos que precisam de legislação complementar e que serão alvo de quatro anteprojetos principais. O mais amplo vai definir as hipóteses de incidência da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), o IVA de competência da União, e do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de Estados e municípios – tributos que começarão a ser implantados em 2026 e que terão vigência integral a partir de 2033. Esse texto trará ainda o detalhamento dos regimes específicos, diferenciados ou favorecidos, aspecto fundamental para se definir a alíquota-padrão do IVA.

Como a reforma tem a premissa de ser neutra do ponto de vista de carga tributária, quanto mais reduzida for a cobrança sobre certos setores, maior será a tributação geral para equilibrar a balança. Na última estimativa, ainda em 2023, a Fazenda previu alíquota próxima de 27,5% – uma das maiores do mundo.

O segundo anteprojeto tratará do Comitê Gestor do IBS, entidade responsável pela operacionalização das regras definidas em lei complementar; enquanto o terceiro terá o desenho do Imposto Seletivo. Já o quarto texto tratará do contencioso administrativo dos novos tributos. Isso não significa, porém, que serão enviados quatro propostas ao Congresso, uma vez que os textos ainda passarão pelo crivo político.

‘Imposto do pecado’, cesta básica e até o que é destino são alvo de disputa

A regulamentação da reforma tributária deve ser votada ainda neste ano. Só depois disso é que o projeto que alterou a cobrança de impostos no País entrará efetivamente em vigor. O processo, porém, não deve ser simples. A cobrança do Imposto Seletivo, chamado de “imposto do pecado”, deve gerar embates no Congresso.

Veja os pontos polêmicos da regulamentação da reforma tributária:

1. Alimentos

Possível alvo do imposto seletivo, a indústria de alimentos alega que o termo “ultraprocessados” não teria respaldo científico e que, num país como o Brasil, com milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar, não seria possível falar em nova taxa sobre a comida. “Ultraprocessados são definidos como formulações industriais com mais de cinco ingredientes; então, qualquer pessoa que fizer uma broa de fubá sabe que vai ter oito, nove ou dez ingredientes”, ironizou João Dornellas, presidente da União da Cadeia Produtiva dos Alimentos e Bebidas Não Alcoólicas (Uncab), durante audiência no Congresso no início deste mês.

Integrantes do Ministério da Saúde, porém, defendem a taxação, destacando que os preços dos ultraprocessados e das bebidas açucaradas passaram a ser menores que os da chamada “comida de verdade”, o que incentiva o consumo. Os técnicos da pasta classificam esses itens de “calorias vazias”, que, segundo eles, fazem mal à saúde, contribuem para a obesidade e geram grandes custos ao SUS.

No início de março, foi divulgado o “Manifesto por uma reforma tributária saudável”, pedindo que os produtos ultraprocessados sejam alvo do Seletivo. O texto foi assinado por médicos como Drauzio Varella, além de personalidades como as chefs Bela Gil e Rita Lobo.

2. Mineração e petróleo

Os setores de mineração e do petróleo também estão em alerta máximo com a regulamentação do Imposto Seletivo. Isso se deve ao fato de a lei abrir margem para a cobrança do tributo na extração de recursos naturais não renováveis, com alíquota de até 1% sobre o valor de mercado do produto extraído.

Empresários dos segmentos reclamam que a cobrança vai onerar o setor produtivo, com possibilidade de taxação em mais de um ponto da cadeia, inclusive na exportação – o que seria um contrassenso em relação aos princípios da reforma.

Para as mineradoras, o essencial é barrar essa cobrança nas vendas externas, com o objetivo de preservar a competitividade do produto brasileiro, sobretudo do minério de ferro – responsável por quase 60% do faturamento do segmento. Já as empresas de óleo e gás buscam estabelecer redutores para a alíquota do tributo, além da possibilidade de isenção completa.

As refinarias independentes, responsáveis por 20% da capacidade de produção nacional, também acompanham de perto essa regulamentação. Elas temem que uma isenção do Seletivo apenas na exportação crie mais um incentivo tributário à venda externa do petróleo, o que prejudicaria o mercado interno.

“Desonerar somente as exportações, sem olhar para as indústrias brasileiras, será criar mais um incentivo à desindustrialização”, afirma Pedro Passos, consultor jurídico da Refina Brasil, associação que reúne os refinadores privados.

3. Cesta básica

A reforma criou a chamada cesta básica nacional, com alíquota zero do Imposto sobre Valor Agregado (IVA), mas adiou a sua definição – o que tem provocado uma forte disputa entre setores e entidades empresariais nos bastidores do Congresso e dos grupos de trabalho.

O segmento de supermercados, por exemplo, propõe foco em “alimentação saudável”, mas refuta a possibilidade de uma “cesta mínima”. A Associação Brasileira de Supermercados (Abras) apresentou uma minuta com 17 categorias de alimentos, incluindo carnes, ovos, laticínios, frutas, legumes, vegetais, farinhas e massas alimentícias.

A indústria agropecuária também participa do debate e quer dar prioridade aos produtos in natura, que atendam ao conceito “do campo à mesa”

Outro ponto que gerou incômodo para os setores envolvidos no debate foi o fato de o presidente Lula ter editado um decreto, em 6 de março, que instituiu uma cesta básica de alimentos saudáveis no País. Como mostrou o Estadão, a medida foi vista como uma forma de o governo se antecipar e atravessar o trabalho da regulamentação.

4.Caipirinha x cerveja

Com o slogan “Álcool é álcool”, a indústria de bebidas destiladas abriu um embate público contra os fabricantes de cervejas em torno da regulamentação do Imposto Seletivo. A investida tem o objetivo de evitar uma taxação diferenciada, como já ocorre hoje com o IPI, de competência federal, e o ICMS, estadual.

“Ter um imposto que possa ser regressivo ou progressivo fará com que iguais sejam tratados como desiguais”, afirmou o diretor de relações com o mercado do Instituto Brasileiro da Cachaça (Ibrac), Carlos Lima, durante audiência no Congresso no início do mês.

A indústria da cerveja, porém, rebate os argumentos. “(Tributação por teor alcoólico) é orientação da OCDE, da OMS e do FMI, inclusive de exemplos com casos de sucesso de vários países, como Rússia, Inglaterra, Espanha e Austrália”, afirmou Márcio Maciel, presidente do Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja, na mesma sessão.

5. O que é destino?

A pergunta parece simples, mas vem mobilizando técnicos, advogados, governadores e prefeitos. Isso porque a resposta vai balizar o novo sistema tributário, que muda a taxação da origem, onde a mercadoria é produzida, para o destino, onde é consumida – e, consequentemente, influenciar a arrecadação de Estados e municípios.

Por exemplo: uma empresa tem matriz em São Paulo e concentra sua contabilidade na capital paulista, mas possui filiais espalhadas pelo País. Ela compra, por meio da sede, materiais necessários à sua atividade e distribui aos demais estabelecimentos. Pela lei, onde se dará o consumo desses itens? Na matriz, que pagou por eles? Ou nas filiais, destino final?

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.