O presidente da Câmara, Arthur Lira, já tinha dado o recado: nenhuma reforma estruturante seria aprovada sem o tempero especial do Legislativo. Mas como fazer isso quando a receita original a ser “aprimorada” foi criada por eles mesmos? Acrescente mais benefícios e mexa até que o texto carregue mais dúvidas que antes. Esse é o resumo da saga envolvendo a Reforma Tributária, discutida e rediscutida há décadas, mas que deve finalmente ser aprovada (ainda que sob condições questionáveis) nos próximos dois meses.

Pelas mãos do deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), a versão 2.0 da Proposta de Emenda Constitucional 45 (PEC 45/2019) envolve a criação de um fundo de amortecimento para estados e municípios, não estipula percentuais para base de cálculo nem para cobrança do imposto no destino, não fala como será a restituição, cria uma transição que pode levar até 40 anos e mostra que o Brasil, nas palavras do economista Marcos Lisboa, “tem potencial para crescer pouco porque usa um sistema feudal”.

Com previsão de votação na Câmara na primeira semana de julho e encaminhamento subsequente para o Senado, o deputado Aguinaldo Ribeiro, falou à DINHEIRO que ainda não há respostas sobre percentual das alíquotas a serem cobradas com a unificação de cinco impostos (IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS) que se tornariam o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).

Tratamento diferenciado

Ele, no entanto, acredita que alguns setores terão regime especial. “Acho difícil que isso seja definido nesta PEC, precisará ser regulamentada por outra Emenda [Constitucional].” E quando não há certezas, sobra espaço para dúvidas.

Alguns setores, que hoje pagam em torno de 15% e 17% em impostos, como serviços e agronegócio, questionam o relatório e prometem travar o avanço do texto se não houver garantias de que suas operações não serão atingidas a ponto de se tornarem inviáveis.

O vice-presidente da Frente Parlamentar do Agronegócio (FPA) na Câmara, deputado Arnaldo Jardim (Cidadania-SP), foi um dos que mostraram insatisfação.

“As premissas do relatório apresentados causam mais dúvidas e incertezas do que antes dele.”
Arnaldo Jardim, vice-presidente da Frente Parlamentar do Agronegócio (FPA) na Câmara

Ele cita como exemplo o aumento dos impostos para os itens da cesta básica. “Isso pode diretamente estrangular os produtores e elevar a inflação”, afirmou.

Ribeiro, por sua vez, argumenta que a questão da inflação seria equilibrada com a criação de um cashback, em que as famílias de baixa renda comprariam os produtos com os impostos integrais e receberiam o valor do imposto de volta.

Como, e para quem, esse benefício seria aplicado não está explícito. E num País em que desvio de dinheiro público é esporte nacional, sabemos no que vai dar.

Aguinaldo Ribeiro, Deputado e relator da PEC 45: “Acho difícil que as alíquotas sejam definidas nesta PEC, precisará de outra Emenda Constitucional” (Crédito: Pedro Ladeira)

Os setores ligados à saúde, em especial as ramificações que prestam serviços para operadoras, também temem aumento da carga tributária.

Fornecedores de máquinas e equipamentos para o transporte público e escolas particulares reforçam o coro dos que acreditam que serão prejudicados.

Sobre essas questões, Aguinaldo Ribeiro diz que ainda é cedo para um debate nessa profundidade, e que nesse momento o texto se propõe apenas a criar um “sistema mais justo e igualitário com equilíbrio para empresas e poder público.”

Esse equilíbrio, segundo o secretário extraordinário da Reforma Tributária, Bernard Appy, viria de colocar em pé de igualdade os impostos pagos por indústria e serviços. “A indústria tem mais etapas de produção, então paga mais vezes impostos que os serviços. Mas a reforma não tem o objetivo de inverter essa situação, apenas recalibrar”, disse à DINHEIRO.

Segundo Appy, o setor de serviços não sairia prejudicado porque se beneficiaria também dos créditos tributários que irão absorver com a passagem das etapas “O restante das eventuais perdas seria compensado pelo crescimento econômico a ser gerado pela reforma.”

Problema estrutural

E ao lado de parte dos empresários no coro por respostas estão prefeitos e governadores. Os mais vocais são os que atuam em regiões fortalecidas pelo agronegócio.

No Mato Grosso o governador Mauro Mendes (União Brasil) afirmou que, nos moldes que está, o texto “aprofunda a desigualdade federativa”. Segundo ele uma reunião entre os governadores do Centro-Oeste e Aguinaldo Ribeiro ajudou a esclarecer as coisas. “Não queremos só criticar, mas apresentar soluções objetivas”, disse.

O ponto dele é que não há como fazer migração de 100% dos impostos para o destino, como determina a reforma. A solução, então, seria uma transição mais lenta, “para que todos possam ter a oportunidade de ir adaptando suas economias”.

Em suma, pedir lentas mudanças para que nada mude. Também é de demanda dos prefeitos, em especial as cidades mais industrializadas, a criação de um fundo de compensação.

O assunto, inclusive, foi abordado no relatório de Aguinaldo. O objetivo é criar o Fundo de Desenvolvimento Regional, cujos valores, repasses e quem poderia usar também não ficam claros.

Bernard Appy, secretário extraordinário do Ministério da Fazenda: “A indústria tem mais etapas de produção. paga mais impostos que os serviços. A reforma não quer inverter a situação, só recalibrar” (Crédito:Pedro Ladeira)

Um texto para regular meio século

O relatório prevê que a transição total leve até 50 anos. O começo das novas regras também foi postergado, de 2025 para 2032.

Para o economista-chefe especialista em Política Fiscal na Warren Rena, Felipe Salto, a necessidade de se aprovar a reforma não pode levar o Congresso ou o governo federal a ceder demais. “A reforma precisa ocorrer, mas é hora de segurar o máximo de anéis”, disse.

De acordo com ele, um sistema cheio de distorções e benefícios como o nosso é o que gera a guerra fiscal. Ele, que também foi secretário da Fazenda do Estado de São Paulo, diz conhecer essa relação de perto. “Vivenciei isso no ano passado. Empresários pulando de estado a estado para ver quem dá mais.”

Por essa razão, Salto entende que a reforma, em seu ponto central, deve fazer com que o ICMS migre para o destino. “Estados exportadores líquidos perdem. Mas ganham logo após com maior eficiência da correção das distorções alocativas.”

E, sendo o ICMS no destino o ingrediente mais importante da nova legislação tributária, todos os elementos colocados na receita só para que a Câmara possa imputar seu DNA precisam ser reavaliados pelo Senado e, se preciso, vetados por Lula.