O caminho para a reformulação do sistema tributário brasileiro foi um daqueles percursos cheio de percalços. Uma discussão que se arrasta há pelo menos três décadas, tentativas de avanços frustrados e muita pressão do setor produtivo por privilégios. Reunindo um daqueles raros momentos de união de capital político e janela de oportunidade, o governo Lula lançou e aprovou sua proposta, deixando “apenas” a regulamentação a ser definida de modo individual. Se pensarmos que a parte mais difícil do caminho já foi trilhada, a aprovação de uma nova normativa tributária, é possível concluir que estes últimos passos, que envolve a regulamentação, será tranquila. Certo? Errado.

A Câmara dos Deputados vive, nas palavras de um parlamentar ligado às negociações, um “entra e sai de empresário que não se via desde a promulgação da Constituição”. Tudo isso cobrará um preço. Pode ser no aumento da alíquota padrão — que vai subir sempre que uma isenção ou desoneração for concedida —, ou na retirada do apoio de importantes elos da cadeia produtiva a um ou outro partido político a depender do posicionamento dos deputados. E talvez aí resida a diferença entre uma reforma eficiente de uma reforma complacente.

Na oratória oficial, as premissas seguem ótimas. O secretário extraordinário da Reforma Tributária do Ministério da Fazenda, Bernard Appy, afirmou que as alterações tributárias devem provocar um aumento de 10% no Produto Interno Bruto em até 13 anos. Durante audiência pública na Câmara, ele confirmou que um dos será a impulsão econômica, ainda que não seja sentido no curto prazo, quando os termos ainda estão em transição. “A lógica é simples. Depois de totalmente implementada, mantendo a carga tributária com a proporção do PIB, se a economia cresce mais, eu aumento minha arrecadação. Todo mundo ganha”, declarou.

Nas contas do secretário, esses efeitos devem reduzir a pressão pelo aumento da carga tributária, em até 13 anos. “O crescimento gerado pela reforma tributária, que não acontece no curto prazo, vai acontecer ao longo dos próximos 10, 12, 13 anos, é um impacto muito grande”, afirmou. “Nós estamos falando aqui de um aumento, nesse período, maior que 10% no PIB potencial do Brasil por conta da reforma tributária.”

A ida de Appy ao Congresso era esperada como uma ação de boa vontade do governo em avançar com a regulamentação dos primeiros textos enviados pelo Executivo. Um deles trata sobre a Lei Geral do IBS, da CBS e do Imposto Seletivo. O Congresso aguarda a Fazenda apresentar o segundo projeto, sobre a gestão e a fiscalização do IBS.

Ainda são esperados dois textos para abarcar, segundo Appy, questões mais técnicas. “O grosso da regulamentação já está posta, cabe ao parlamento discutir a melhor forma de condução. Estamos confiantes que haverá alinhamento entre as expectativas do Executivo com as decisões do Legislativo”, disse.

(Pedro França)

“O grosso da regulamentação já está posta, cabe ao parlamento discutir a melhor forma de condução.”
Bernard Appy, secretário extraordinário do Ministério da Fazenda

PONTAPÉ INICIAL

Para começar a se debruçar oficialmente sobre o tema (já que pelos gabinetes da Câmara este assunto é recorrente) , o presidente da Casa, Arthur Lira abriu as funções de dois grupo de trabalho (GT) que discutirão a regulamentação.

O primeiro, que teve seu primeiro encontro na terça-feira (28), avaliará o PLP 68/24, com as principais normativas e que foi enviada pelo governo em abril. Regulamenta, por exemplo, assuntos como cashback, exportações e regimes diferenciados. Cada um dos pontos será discutido em encontros específicos, entre os oitos previamente marcados até a entrega do relatório, prevista para julho.

• O segundo GT trata da atuação do Comitê Gestor do IBS e da distribuição das receitas do IBS entre os entes federativos, assuntos que ainda não ganharam grande espaço para discussão nos corredores do Congresso pela demora do governo em enviar o projeto. Apesar de menos complexa que a primeira,a forma como serão divididos os impostos deve gerar bastante pressão de governadores e prefeitos, o que tem um efeito especial no Congresso em ano de eleições em seus redutos eleitorais.

Segundo Mauro Benevides, que acompanha de perto as tramitações e faz parte do GT, ressaltou esse temor dos governadores. “Eles estão muito preocupados com esse regramento de distribuição”, disse.

(Ana Volpe)

“Os governadores e prefeitos estão muito preocupados em como serão distribuídos os impostos dentro das novas regras.”
Mauro Benevides, deputado federal de parte do GT

Mesmo com as pontas soltar, o parlamentar confirmou à DINHEIRO que foi mantido o plano de entrega do relatório antes do recesso legislativo. “Estamos alinhados com o governo no que diz respeito aos prazos. Queremos dar celeridade, mas precisamos promover um debate de qualidade”, disse ele.

Questionado sobre outros assuntos que podem gerar discussão durante o GT, ele afirmou haver dúvidas sobre fiscalização do IBS nas esferas municipais e estaduais. Para responder tal questão, Bernard Appy chegou a citar durante a audiência na Câmara que a digitalização dos processos torna muito difícil qualquer tipo de erro de bitributação ou sonegação, impedindo, inclusive, fraudes.

Arthur Lira, presidente da Câmara, na abertura dos grupos de trabalho que irão regulamentar as novas regras fiscais (Crédito:Lula Marques/ Agência Brasil)

Há também uma discussão que não foi citada de forma direta na reforma tributária desenhada pelo governo, mas pode ganhar força por se tratar de um setor com bastante influência no Legislativo: o turismo.

A ideia dos parlamentares, em especial os ligados às bancadas das regiões Sul e Nordeste, sugerem a inclusão do de tax free para o IBS/CBS para incrementar as viagens. O tax free consiste no reembolso dos impostos pagos nas compras feitas por turistas estrangeiros. O secretário extraordinário da Reforma Tributária afirmou que a medida depende de análise do custo e benefício, e disse que o assunto pode ser estudado pelo governo.

(Roque de Sá)

“Agora será possível avaliar o lobby e a influência das grandes empresas nas decisões do Congresso.”
Marcos Lisboa, economista

Com tudo isso em jogo para negociação, não é incomum ver presidente de empresa, diretor de associação e economistas circulando no Congresso.

Empresários do ramo de serviços, por exemplo, têm organizado idas conjuntas, separando em setores como logísticas, tecnologia e turismo, para fazer uma pressão escalada. O setor é um dos que deve enfrentar a maior alteração na alíquota básica.

Para o economista e ex-secretário do Ministério da Fazenda dos governos Lula I e II, Marcos Lisboa, esse comportamento tem nome. “Captura de interesses”. De acordo com ele, os conglomerados com grande poderio econômico sempre transitaram em Brasília, e as contas nunca são as melhores para o bem comum. “Vamos sentir quais são os grupos poderosos, e qual a capacidade do Congresso em repelir interesses que não conversem com o bem do País.” São as pedras no caminho.