09/11/2020 - 11:36
Desde intimidar pessoas que espionaram até roubar identidades, as polêmicas práticas de policiais britânicos que durante décadas se infiltraram em grupos ativistas são objeto de uma investigação sobre um dos maiores escândalos policiais do país.
Em 2010, Kate Wilson foi avisada por amigos que seu ex-namorado Mark Stone, que ela conheceu em um protesto contra o G8, nunca existiu. Ele era na verdade um policial chamado Mark Kennedy, casado e pai de família, infiltrado entre os ativistas.
“É absolutamente horrível”, disse à AFP a enfermeira de 42 anos. As memórias de sua vida ficam “completamente destruídas”.
O agente havia sido desmascarado por Lisa, outra das muitas mulheres com quem se envolveu durante sua longa missão que também o levou à Espanha, França e Alemanha.
Depois de morar junto por seis anos, ela encontrou seu passaporte verdadeiro.
“Era a pessoa com quem dividia tudo”, diz no site “Police Spies Out of Lives”, associação que defende mulheres como ela “enganadas (…) pelo Estado”.
Apelidados de “policiais espiões”, vários desses agentes tiveram relacionamentos românticos de longa data com seus “alvos”. E se apropriaram da identidade de pessoas, principalmente crianças, já mortas.
Alguns até tiveram filhos, como “Bob Robinson” (na verdade Bob Lambert), cujo filho nasceu em 1985, um ano depois de conhecer Jacqui, uma jovem que acreditava compartilhar seu amor pela causa animal.
Ele desapareceu dois anos depois, alegando ser perseguido pela polícia. Na verdade, havia terminado sua missão. Jacqui não soube da verdade até 2012 por meio da imprensa.
– Buscar “a verdade” –
“Esta investigação buscará a verdade”, disse David Barr, advogado da equipe de investigação que começou a trabalhar na semana passada.
Segundo a mídia, desde 1968, pelo menos 139 policiais se infiltraram em mais de mil grupos, principalmente de esquerda, mas também de extrema direita, sindicatos, organizações ambientalistas, associações antirracistas, pacifistas e feministas.
Foi nesse ano que a Scotland Yard criou o Esquadrão Especial de Manifestações, inicialmente para monitorar os protestos contra a Guerra do Vietnã.
Foi dissolvido em 2008, assim como a Unidade Nacional de Inteligência de Ordem Pública dois anos depois.
“Alguns desses grupos eram tão marginais que essas operações eram difíceis de justificar”, explica a advogada Lydia Dagostino, que coordena a defesa dos espionados.
Foram as revelações sobre a espionagem à família da vítima de um crime racista, que marcou o Reino Unido, que chocaram Theresa May, então ministra do Interior, levando-a a abrir um inquérito público em 2015.
Um ex-agente infiltrado, Peter Francis, disse à imprensa que havia espionado para tentar desacreditar os pais de Stephen Lawrence, um jovem negro assassinado por brancos em 1993 em Londres.
– “Acobertamentos” –
As primeiras audiências da investigação pública, com custo de 30 milhões de libras (US$ 40 milhões), começaram cinco anos depois, após atrasos devido à sensibilidade do caso e, em seguida, à pandemia do coronavírus.
As conclusões não são esperadas antes de 2023.
As vítimas têm “um desejo real (…) de saber a verdade, de saber o que lhes aconteceu e porquê, e quem (…) tomou as decisões”, explica Dagostino, “para que isso não volte a acontecer”.
“Alguns estão destruídos e nunca vão se recuperar”, acrescenta.
Em 2015, a polícia de Londres pediu desculpas a várias mulheres e as compensou financeiramente. Afirmou que as relações sexuais com “objetivos” não eram permitidas e que tais práticas eram coisa do passado, uma vez que a infiltração de agentes passou a se basear “em um claro código de ética e em um enquadramento legislativo”.
Mas essa justificativa é insuficiente para Kate, que denuncia uma investigação de fachada, marcada por “acobertamentos”.
Ela lamenta que as audiências não sejam acessíveis ao público, ou divulgadas na Internet, apesar da publicação das transcrições, e sobretudo que dezenas de policiais não tenham sido identificados, nem mesmo com seus nomes falsos.