29/10/2003 - 8:00
Três disquetes, zelosamente trancados em três cofres diferentes, guardam, nos últimos dez anos, a memória de alguns dos momentos mais explosivos da recente história econômica do Brasil. Dois deles estão em bancos brasileiros. O terceiro, em Miami, nos Estados Unidos. O conteúdo dos três discos é idêntico: neles, o
ex-presidente da República Fernando Collor de Mello armazenou, em 674 páginas de texto, os relatos dos turbulentos dias em que seus atos definiam o destino do País, da sua eleição para a Presidência da República, em 1989, ao dia em que saiu do Palácio do Planalto pela porta dos fundos, retirado à força por um processo de impeachment. O livro da Era Collor, narrado por seu protagonista, está pronto. Nem o próprio autor sabe, no entanto, quando irá ao prelo ? o ex-presidente ainda não se sente à
vontade para expor, integralmente, sua versão do conturbado
período em que ostentou a faixa presidencial. Na semama passada, no entanto, Collor resolveu quebrar o silêncio. DINHEIRO teve acesso à obra e parte das anotações que ele utilizou ao escrevê-la. Lá estão os bastidores do mais polêmico plano econômico já implementado no País, aquele em que, no primeiro dia de mandato, Collor decretou um choque de liquidez nas finanças nacionais e determinou que cada brasileiro só poderia dispor de 50 cruzados de suas economias. Como e por que se chegou ao confisco de contas correntes e investimentos ? a que o ex-presidente se refere como ?bloqueio de ativos? ? o leitor de DINHEIRO fica sabendo nas próximas páginas, nas palavras do próprio ex-presidente, em uma entrevista exclusiva e em trechos inéditos do livro.
DINHEIRO ? Por que o livro?
FERNANDO COLLOR DE MELLO ? Comecei a rascunhar as páginas quando morei em Miami, depois do impeachment. Foi uma forma de metabolizar meu sofrimento. Ao final, cheguei a 674 páginas. De vez em quando, vou ao computador, releio, e mudo algumas coisas.
E por que decidiu não publicá-lo
até hoje?
Uma das primeiras pessoas que leu o texto foi o ex-ministro Thales Ramalho. Num dia, ele folheava as páginas e eu observava sua expressão facial. Aos poucos, seus olhos se arregalaram. Ele disse: ?Presidente, é melhor deixar isso para depois?. E ele refletiu, com razão, que o livro seria classificado como autobiográfico. Seria como se eu estivesse na ante-sala da morte. Além disso, há muitas histórias, verdadeiras, sobre pessoas que ainda estão vivas. Aliás, uma das partes de que eu mais gosto é a seção de perfis.
De quem?
Essa parte prefiro guardar.
O sr. foi o autor do plano econômico mais polêmico da história recente do País e ficou marcado como o homem que confiscou as economias dos brasileiros. Como, quase 14 anos depois, o sr. avalia essa decisão? Sente algum remorso?
Em primeiro lugar, não houve confisco pois não nos apropriamos do dinheiro. Foi tudo devolvido. O que fizemos foi um bloqueio de ativos. Hoje é muito difícil, como protagonista, fazer um balanço de acontecimentos como esse com pura isenção. O que posso dizer é que a inflação caiu de 86% ao mês para 22% ao mês dois anos e meio depois. A dívida interna caiu de US$ 60 bilhões para US$ 12 bilhões. As reservas cambiais estavam a zero e deixamos em US$ 28 bilhões. O déficit público, que era de 9% do PIB, terminou em 1%. Fizemos o que tinha de ser feito. Na época, não senti medo. Sabíamos que a reação popular seria de igual força e intensidade à das medidas que devíamos tomar.
O sr. não acha que o seu impeachment começou a
nascer ali, no confisco?
Sem dúvida. Outro dia recebi uns estudantes da USP. Perguntei que idade eles tinham em 1992. A mais nova tinha oito anos e o mais velho tinha 11. A mocinha disse algo que me tocou, porque eu me coloquei no lugar dela.
O quê?
Ela contou que foi às ruas e que
pintou o rosto pela minha saída.
Quando eu perguntei o porquê, ela
disse que não tinha muita noção das
coisas na época, mas que se lembrava
de uma história da sua empregada, que
tinha uma Brasília amarela e estava
juntando um dinheirinho para comprar um carro melhor, mas teve o dinheiro retido na conta. Ou seja: em toda família brasileira, tem sempre uma história de sofrimento, um trauma ligado ao plano.
Voltando no tempo, quando o sr. resolveu realmente partir para o bloqueio dos ativos financeiros?
O episódio crucial foi uma reunião que tive com o Mário Henrique Simonsen (ex-ministro da Fazenda), o Daniel Dantas (dono do Banco Opportunity) e o André Lara Resende (economista considerado o pai do Plano Real), no começo de janeiro de 1990. Naquele dia, em Brasília, perguntei ao Daniel sobre os cenários traçados pelo mercado financeiro e vi que a questão do bloqueio ainda não era levada muito a sério. Aquilo foi decisivo.
Por quê?
O André disse ao Simonsen que o bloqueio era a medida correta para evitar a hiperinflação. Mas os três também diziam que era inviável do ponto de vista político. Que ninguém teria coragem.
E o que o sr. fez em seguida?
Liguei para a Zélia Cardoso de Mello, marquei uma reunião e disse que caminharíamos mesmo para um congelamento dos ativos. Ela suspirou e disse que, de acordo com todo mundo que ela ouvia, era mesmo a coisa certa a fazer. O Brasil corria o risco de viver uma crise hiperinflacionária semelhante à da Alemanha nos anos 20, quando as pessoas iam comprar um pãozinho com um carrinho de dinheiro.
Quem a Zélia ouvia?
Ela ouviu muito o João Manuel Cardoso de Mello, o Luiz Gonzaga Belluzzo e o Andrea Calabi. Mas havia muitos outros. Gente como o Pérsio Arida, por exemplo. Essa idéia do bloqueio era uma daquelas coisas que todos sempre mencionavam sem dar o nome devido, por medo. É como no futebol. O torcedor do Palmeiras sabe do rebaixamento mas não quer nem falar nisso.
O que o mercado esperava?
Um congelamento de preços. Mas não funcionaria. A liquidez era tão grande que, com os preços congelados, todos partiriam para o consumo. Haveria inflação de demanda e desabastecimento.
Como vocês escolheram o Ibrahim Eris?
Aos poucos, a equipe foi se adensando. Chegaram o Antônio Kandir, que foi eleitor do Lula, e o João Santana. Faltava um nome para o Banco Central. A Zélia e o Kandir falavam muito bem do Ibrahim Eris. Pedi então que marcassem uma reunião. O Ibrahim chegou, começou a falar daquele jeito enrolado e eu levei um susto. Interrompi a reunião, saí com a Zélia por uns instantes e disse: ?Esse cara não fala português, não é brasileiro?. Também nunca vi alguém que fumasse tanto. Como é que iria explicar um plano tão traumático? A Zélia e o Kandir insistiram e ficou combinado que o Kandir, que é professor, um sujeito didático, explicaria o plano.
Como foi a sua expectativa antes do confisco?
Uma angústia muito grande. Eu perguntava à Zélia se não daria para liberar o pequeno poupador, o aposentado. Foram feitos vários exercícios. Mas ela me dizia algo que me tranqüilizava.
O quê?
Que meus eleitores, os pés descalços, os descamisados, estes não tinham conta em banco. Estavam fora do sistema.
E por que vocês decidiram bloquear até as contas correntes?
A cinco dias da posse, isso não estava no plano. A Zélia me chamou então para uma reunião e vi que os economistas estavam muito nervosos. O Ibrahim explicou, então, que estava ocorrendo uma migração muito grande de recursos de vários investimentos para a conta corrente e que isso inviabilizaria o plano. Eu, que já estava angustiado, me assustei: ?O que mais temos de bloquear?? Aí ele falou que o ideal era incluir tudo, até a conta corrente. Pouco depois, a Zélia também me disse que o Ibrahim ameaçava pular fora, deixar o barco, se não fizessemos isso.
O sr. cedeu a essa ameaça?
Não à ameaça, mas ao fato de que teríamos que fazer tudo ou nada. Que não poderíamos desperdiçar a nossa chance, o que eu chamava de única bala na agulha. Convocamos o Bernardo Cabral, que dava feição jurídica às medidas. Primeiro ele ficou perplexo. ?Até a conta corrente??, perguntou. Em seguida, concluiu que, juridicamente, seria mais fácil montar o plano com tudo incluído. Finalizamos as medidas 48 horas antes do feriado bancário.
Quando o plano não teve mais volta?
No dia da minha posse, 15 de março de 1990. Depois do discurso no Parlatório fui ao meu gabinete e, no intervalo do almoço, assinei as medidas em uma mesa- redonda. Não quis sentar na cadeira presidencial com o estandarte da República, que o Sarney usava, antes que trocassem os móveis. O Bernardo ficou encarregado de levar o plano ao Diário Oficial, mas no final do dia, para evitar vazamentos. À noite, rezei: Meu Deus do céu, ajudai-me para que amanhã as coisas não sejam tão dramáticas.
Mas no dia seguinte, o caos se instalou no Brasil.
É verdade.
A começar pela entrevista coletiva da equipe econômica que anunciou o plano.
Foi um desastre. Assisti à entrevista pela TV e vi que estava tudo errado. Eles estavam sentados no lugar errado, a câmera estava no lugar errado e eles não estavam conseguindo explicar nada. A Zélia gaguejava, o Ibrahim fumava o tempo todo e o Kandir não explicava. Estive a ponto de ir lá interromper aquela entrevista. Mas, acertadamente, não o fiz. Seria a desmoralização completa.
E o que o sr. fez?
Chamei os economistas e disse que assumiria a comunicação. Eles deram graças a Deus. Fui à TV e usei figuras de linguagem, como a metáfora da barragem. Precisávamos conter aquela liquidez. E também começamos a falar nas torneiras, que seriam abertas de acordo com as necessidades.
Que histórias o sr. relata no livro que aconteceram
depois do plano?
Tem episódios engraçados. Na primeira semana de governo, o Delfim Netto pediu uma audiência. Chegou lá esfuziante e disse: ?Genial, genial, presidente, mas devolver esse dinheiro, nem pensar, né?? Eu disse que, de acordo com a medida provisória, devolveria em 18 meses. Ele olhou desconfiado e retrucou: ?Não vou duvidar da sua palavra, mas quero estar vivo para ver isso?.
A reação positiva partiu da direita?
Não. O Aloizio Mercadante procurou a Zélia no Ministério e disse: ?É o plano dos nossos sonhos, mas se fôssemos nós que tivéssemos feito, estaríamos fora do governo no dia seguinte?. A população também absorveu aquilo. Eu recebia comentários de motoristas de táxi que comemoravam. ?Agora, todos ficaram pobres como a gente?, eles diziam. Três meses depois, minha popularidade ainda estava em 65%.
A Zélia não foi sua primeira opção para o Ministério. Como o sr. tratava esse assunto?
Ela seria secretária de Planejamento e estava feliz com isso. No começo da campanha, pensávamos em um economista liberal. Depois, logo que ganhamos, convidei o PSDB. Eles teriam o coração do governo. José Serra ficaria na Fazenda e o Fernando Henrique Cardoso seria chanceler. Precisávamos de base política e apoio parlamentar. Mas o Mário Covas sabotou esse acordo.
Por que o Serra?
Ele tinha afinidades com os nossos economistas. Nossa equipe era de esquerda. Muitos vinham da Unicamp.
Ele teria feito o confisco?
Segundo a Zélia, sim. Ela me disse que, naquele ninho
tucano, só o Serra teria condições de levar o plano adiante.
Só ele tinha, como se diz…
Como o sr. dizia, ?aquilo roxo??
É. Entre os tucanos, só ele teria coragem.
Quando a Zélia caiu, o sr. pensou novamente no José Serra?
Pensei, antes de convidar o Marcílio Marques Moreira. O Jarbas Passarinho veio de forma secreta a São Paulo e fez uma sondagem. Voltou e me deu uma explicação que eu jamais compreendi.
Qual?
Que o Serra teria recusado porque não podia deixar as três sessões semanais de psicanálise que fazia em São Paulo. Por que dar uma desculpa tão íntima, tão pessoal? Nunca entendi.
Ele foi quase ministro duas vezes?
É, talvez seja a sina, o destino dele, o Maktub.
O sr. pensou depois em fazer um plano semelhante ao real?
Ainda em 1992, o André Lara Resende me procurou. Almoçamos a sós no Palácio do Planalto. Ele me mostrou um plano que se chamava Brasil Ouro e que previa uma âncora cambial, além da desindexação. Era o Real, sem tirar nem pôr. André dizia que era a continuação do nosso programa econômico.
Por que não foi lançado?
Tínhamos um cronograma. Nossa equipe tinha o Marcílio Marques Moreira, na Fazenda, o Francisco Gros, na presidência do Banco Central, e o Armínio Fraga, na diretoria internacional. Estávamos acumulando reservas internacionais e o plano viria em outubro de 1992, depois das eleições municipais. Mas eu fui ?impichado? antes.
O sr. recorda esse período com amargura?
Claro que não saí radiante da Presidência. Mas já metabolizei tudo. O homem público é do tamanho da onda que o carrega. A minha onda me levou a uma praia lindíssima, à mais alta magistratura da Nação. E depois, aos rochedos.
Que avaliação o sr. faz do presidente Lula, seu adversário 14 anos atrás?
Antes de assumir, eu dizia que iria deixar a direita indignada e a esquerda perplexa. O Lula deixou a direita perplexa e a esquerda indignada.
Por quê?
A vitória traz no seu bojo grandes contradições. Durante 22 anos, o PT condenou a ganância do sistema financeiro internacional. Lula colocou no BC o ex-presidente do BankBoston, Henrique Meirelles. Durante 22 anos, Lula disse que não poderíamos exportar comida enquanto um brasileiro passasse fome. O ministro do Desenvolvimento, o Luiz Furlan, é o maior exportador de alimentos do País. Durante 22 anos, ele condenou a agricultura intensiva, em prol da agricultura familiar. Seu ministro, o Roberto Rodrigues, é um grande produtor rural.
São nomes ruins?
Não. Lula fez a opção correta de governar para o País e não
para o partido. E ele tem ao seu lado um craque, que é o
José Dirceu. Só acho que estão perdendo tempo demais com uma agenda que já se exauriu.
A sua agenda?
É, a agenda que inauguramos nos anos 90. O Brasil precisa de uma guinada.
À esquerda?
Não. Ao pragmatismo. O Brasil não suporta mais essa política de superávits primários. Tenho certeza de que teremos de repactuar a dívida interna. E sei que tem muita gente pensando nisso.