16/12/2020 - 21:03
A obsessão da cientista húngara Katalin Kariko em pesquisar uma substância chamada mRNA para combater doenças custou a ela uma posição no corpo docente de uma prestigiosa universidade dos Estados Unidos, que considerava a ideia um beco sem saída.
Agora, seu trabalho pioneiro – que abriu caminho para as vacinas da Pfizer e da Moderna contra a covid-19 – pode ser o que vai salvar o mundo de uma pandemia de 100 anos.
“É simplesmente inacreditável”, disse ela à AFP em uma videochamada de sua casa na Filadélfia, acrescentando que não estava acostumada com a atenção após trabalhar por anos na obscuridade.
Isso mostra por que “é importante que a ciência seja apoiada em muitos níveis”.
Kariko, de 65 anos, passou grande parte da década de 1990 redigindo pedidos de bolsas para financiar suas pesquisas sobre o “ácido ribonucleico mensageiro” – moléculas genéticas que informam às células quais proteínas produzir, essenciais para manter nossos corpos vivos e saudáveis.
Ela acreditava que o mRNA era a chave para o tratamento de doenças em que ter mais do tipo certo de proteína pode ajudar – como reparar o cérebro após um derrame.
Porém, a Universidade da Pensilvânia, onde Kariko estava prestes a se tornar professora titular, decidiu pôr fim ao projeto depois que as recusas de financiamento se acumularam.
“Eu estava concorrendo a uma promoção, mas eles simplesmente me rebaixaram e esperaram que eu fosse embora”, contou ela.
Kariko ainda não tinha um ‘green card’ (residência permanente nos EUA) e precisava de um emprego para renovar seu visto. Também sabia que não seria capaz de colocar sua filha na faculdade sem o desconto para funcionários.
Ela decidiu, então, persistir como pesquisadora do escalão inferior, sobrevivendo com um salário ínfimo.
Foi um ponto baixo em sua vida e carreira, mas “eu só pensei… Sabe, a bancada (do laboratório) está aqui, eu só preciso fazer experimentos melhores”, disse.
A experiência moldou sua filosofia para lidar com as adversidades em todos os aspectos da vida. “Pense bem e, no final, você tem que dizer ‘o que posso fazer?'”, reflete Kariko. “Porque assim você não desperdiça sua vida.”
A determinação está na família – sua filha, Susan Francia, de fato estudou na Universidade da Pensilvânia, onde fez um mestrado, e ganhou medalhas de ouro com a equipe olímpica de remo dos Estados Unidos em 2008 e 2012.
– Avanços combinados –
Dentro do corpo, o mRNA entrega às células as instruções armazenadas no DNA, as moléculas que carregam todo o nosso código genético.
No final dos anos 1980, boa parte da comunidade científica estava focada no uso de DNA para terapia genética. Mas Kariko acreditava que o mRNA também era promissor, já que a maioria das doenças não é hereditária e não precisa de soluções que alterem nossa genética de modo permanente.
Primeiro, no entanto, ela teve que superar um enorme problema: nos experimentos com animais, o mRNA sintético estava causando uma resposta inflamatória maciça, pois o sistema imunológico detectava um invasor e corria para combatê-lo.
Kariko, junto com seu principal colaborador, Drew Weissman, descobriu que um dos quatro blocos que formam o mRNA sintético era o culpado e que eles poderiam superar o problema trocando-o por uma versão modificada.
Eles publicaram um artigo sobre a descoberta em 2005. Então, em 2015, descobriram uma nova maneira de entregar mRNA em camundongos, usando um revestimento de gordura chamado “nanopartículas de lipídios”, que impede a degradação do mRNA e ajuda a colocá-lo dentro da parte correta das células.
Ambas as inovações foram essenciais para as vacinas da covid-19 desenvolvidas pela Pfizer e sua parceira alemã BioNTech, onde Kariko agora é vice-presidente sênior, bem como para as vacinas produzidas pela Moderna.
Ambos funcionam dando às células humanas instruções para produzir uma proteína da superfície do coronavírus, que simula uma infecção e treina o sistema imunológico para quando ele encontrar o vírus real.
– Novos tratamentos –
O mRNA se degrada rapidamente e as instruções que ele dá ao corpo não são permanentes, tornando a tecnologia uma plataforma ideal para diversas aplicações, explicou Kariko.
Isso pode variar de novas vacinas contra a gripe, mais rápidas de desenvolver e mais eficazes do que a geração atual, a novos tratamentos para doenças.
Por exemplo, a AstraZeneca está trabalhando atualmente em um tratamento de mRNA para pacientes com insuficiência cardíaca, que entrega proteínas sinalizadoras que estimulam a produção de novos vasos sanguíneos.
Embora não queira dar muita importância a isso, como uma mulher estrangeira em um campo dominado por homens, ela às vezes se sente subestimada. Conta que após suas palestras, alguns se aproximam e perguntam “quem é seu supervisor?”.
“Sempre pensam ‘aquela mulher com sotaque, deve haver alguém atrás dela que é mais inteligente ou algo assim'”, disse ela.
Agora, se tudo correr bem com as vacinas da Pfizer e da Moderna, não é difícil imaginar que o comitê do Prêmio Nobel reconheça Kariko e outros pesquisadores de mRNA.
Isso seria agridoce para Kariko, cuja falecida mãe ligava para ela todos os anos após os anúncios dos premiados para perguntar por que ela não havia sido escolhida.
“‘Nunca na vida recebo bolsas (federais), não sou ninguém, nem mesmo docente'”, ria ela. Ao que sua mãe respondia: “Mas você trabalha tanto!”