12/07/2025 - 5:44
Conquistas recentes de atletas e artistas brasileiros ajudaram a animar o orgulho nacional. No entanto, ideia de inferioridade do país frente a nações desenvolvidas persiste no imaginário popular.”Esse país não vai para a frente porque o povo não gosta de trabalhar, é um povo preguiçoso”. A fala é da empresária Odete Roitman, personagem vivida pela atriz Débora Bloch no remake da novela Vale Tudo da TV Globo. A atriz já afirmou que a vilã encarna o complexo de vira-lata ao subestimar tudo que é nacional. Para a autora da nova versão da trama, Manuela Dias, falar mal do país “está saturado”.
Em 1958, o escritor Nelson Rodrigues foi quem batizou esse traço de inferioridade contido na cultura brasileira. Na crônica À sombra das chuteiras imortais publicada na revista Manchete, o autor diz que o brasileiro “é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem”. Mas, ele argumentou que essa “falta de fé em si mesmo” foi superada quando a seleção masculina de futebol conquistou o primeiro título de Copa do Mundo contra a Suécia, depois de vencer outros times europeus.
No entanto, especialistas ouvidos pela DW afirmam que esse pessimismo em relação ao Brasil ainda está presente no imaginário do país, que oscila entre períodos de maior ou menor ênfase. Se por um lado, as críticas encarnadas por Odete Roitman em 1988 e em 2025 ainda encontram eco no público, por outro, a projeção de atletas e artistas brasileiros em competições e premiações internacionais contribui para reacender o orgulho nacional.
Foi o caso da ginasta Rebeca Andrade, que conquistou a medalha de ouro nas Olimpíadas de Paris e, em maio deste ano, Hugo Calderano, que levou a prata no mundial de tênis de mesa. No cinema, Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro, e O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho, a Palma de Ouro de melhor ator e direção no Festival de Cannes.
Economia da inferioridade
O pesquisador da Universidade Federal do ABC (Ufabc) Gilberto Maringoni aponta que, embora a cultura e o esporte sejam um alento, são insuficientes para justificar esses momentos de maior euforia. Ele lembra que, no contexto da Copa de 1958, o país atravessava um período de ascensão econômica, com a construção de Brasília e o impulso à industrialização.
No entanto, desde os anos 1980, o país passou por épocas de hiperinflação e desemprego e a indústria tem cada vez menos participação no Produto Interno Bruto (PIB). “A economia vive um constante voo de galinha, aos solavancos, e não consegue decolar. Quando precisamos importar tecnologia, por trás disso, há a ideia de que não somos capazes de produzi-la, o que reforça a perspectiva de que tudo que é estrangeiro é melhor. Ou quando o país foca em exportar commodities, é como se não conseguisse produzir mercadorias sofisticadas, mas o Brasil tem capacidade de inventar.”
Uma pesquisa divulgada pela consultoria AtlasIntel em abril mostrou que na percepção de 44% dos brasileiros, o cenário no mercado de trabalho é ruim. Outros 37% disseram que a situação econômica da família é desfavorável. Além disso, indicaram como os maiores problemas do país a criminalidade e tráfico de drogas, corrupção e a inflação. Por isso, o economista Eduardo Giannetti diz que em 2025 o Brasil está no meio do espectro entre os sentimentos de inferioridade e autoestima.
“O Brasil viveu um momento de quase euforia ao final do segundo mandato do governo Lula, quando havia um caminho muito promissor de crescimento econômico com o aumento da classe média. Agora, é improvável que o país tenha uma condição forte de confiança quando a economia não está indo bem”, afirmou.
Para Giannetti, esse pessimismo tem a ver com a visão de uma elite econômica e acadêmica sobre o país. “Segundo essa visão, nós somos uma cópia malfeita da civilização moderna na Europa e nos Estados Unidos, que desconsidera o Brasil como opção cultural de forma de vida mais voltada para o as relações humanas do que para o consumo, a tecnologia, a eficiência.”
Raiz colonial
Para os pesquisadores, esse discurso da inferioridade brasileira está atrelado à formação do país desde a colonização e a miscigenação entre europeus, indígenas e povos africanos que foram escravizados. “Para se obrigar um escravo a trabalhar, não bastava ter o chicote e a corrente, era preciso convencê-lo de que era inferior e não prestava para nada. Com isso, o complexo de vira-lata é inoculado ao povo, seja pelo colonizador, ou pelas classes dominantes”, explica Maringoni.
Segundo o pesquisador, depois da abolição da escravidão em 1888, a imigração de trabalhadores europeus para o Brasil “aumentou a percepção do vira-lata a partir da ideia do embranquecimento”. Ele lembra que intelectuais da época, como Nina Rodrigues e Silvio Romero, se apoiaram em noções do racismo científico para justificar que o Brasil seria um país inferior por conta da mistura étnica.
Eduardo Giannetti diz que essa perspectiva contribuiu para a identificação cultural com o pessimismo. “Mas me parece altamente equivocado chamar esse sentimento de inferioridade de complexo de vira-lata”, afirma. “Por que eleger o vira-lata como aquilo que nós temos de pior? O vira-lata é a miscigenação. Há implicitamente nessa metáfora um subtexto de que o puro é superior ao misturado. Eu considero isso muito grave, denota uma discriminação de ordem racial. O verdadeiro complexo de vira-lata é a ideia de que há algo errado em ser vira-lata.”
Superação do viralatismo
Assim como no passado colonial, na atualidade a ideia de inferioridade do povo brasileiro persiste. Para a filósofa Marcia Tiburi, quem carrega o complexo de vira-lata não são as populações alvo dessa narrativa, mas sim as classes sociais dominantes. “Essa humilhação é uma tecnologia política utilizada pelos donos do poder, que são ao mesmo tempo os donos da violência, em um país colonizado, patriarcal e racista como o nosso, para explorar os mais pobres, as mulheres e negros.”
Ela ressalta que, ao longo do tempo, a repetição dessas ideias por intelectuais e integrantes de uma elite social e acadêmica, fez com que fosse tomada como verdadeira. “Por exemplo, se criou essa ideia de que brasileiro não trabalha. Quem já viveu na Europa sabe o quanto os brasileiros trabalham e muito. São falas que funcionam por repetição e que vão criando essa verdade que domina a subjetividade como um todo.”
Contudo, Tiburi observa que os grupos alvo de quem reproduz o discurso do complexo de vira-lata, passaram a se organizar em movimentos sociais, como o negro e o feminista de modo a se dissociar de um estereótipo negativo. “As populações que eram humilhadas vêm superando a humilhação por meio dos movimentos sociais, em que as pessoas criam consciência. A gente vê hoje uma negritude orgulhosa de si no Brasil.”
Para suplantar o sentimento de que o país não deu certo, os especialistas consideram que é preciso mais do que uma mudança de mentalidade, é necessário prover melhores condições de vida para a população, quanto ao ensino, transporte, segurança e saneamento básico, por exemplo. Dados oficiais apontam as dificuldades como 29% de analfabetismo funcional, falta de acesso à rede de esgoto em 37,5% das casas, além da persistência da insegurança alimentar em 27,6% das residências.
“Nós temos um leque de desafios de ordem prática que o país há muito tempo vem deixando de endereçar com a firmeza necessária”, diz Giannetti. “Acho que tão importante quanto a agenda mais pé no chão é a agenda simbólica. Oswaldo de Andrade, coloca a questão: tupi or not tupi? Eis a questão. Eu acho que a resposta é tupi and not tupi. Vamos absorver os elementos essenciais da cultura ocidental moderna, no que ela tem de importante, na medicina, na tecnologia, mas sem perder aquilo que nos distingue como cultura dotada de originalidade.”