Tirar os sapatos dos pés e colocá-los sobre a mesa em plena reunião de negócios soa como heresia no mundo corporativo. Principalmente para ele, um executivo dado a poucas brincadeiras, 53 anos nas costas, 30 deles trabalhados em multinacionais sisudas como IBM, Xerox e Lucent Technologies. Mas para Renato Furtado esse é um sinal de sucesso, porque na indústria calçadista é assim que se fecha um bom contrato: examinando costuras, arranhando o couro, apertando o solado, olhando de perto cada detalhe do produto ? nem que para isso seja necessário ficar descalço. ?Foi uma mudança e tanto na minha vida?, conta Furtado, o novo diretor-superintendente da Calçados Samello, uma das maiores fabricantes de sapatos do País, com produção de 2,2 milhões de pares anuais e faturamento de R$ 100 milhões. Mudança mesmo foi na vida da própria Samello. Furtado representa um marco histórico: é o primeiro ?forasteiro? a comandar a empresa em 79 anos de atividades.

Desde que foi fundada em Franca (SP) pelo sapateiro Miguel Sábio de Mello a companhia só foi administrada por herdeiros. Mas ao chegar à quarta geração com primos, tios e irmãos de cinco ramos familiares diferentes ocupando 90% das gerências e diretorias, os Mello resolveram sair de cena. Fora do dia-a-dia executivo do negócio, a família se concentrará apenas no recém-criado conselho de administração, definindo os rumos estratégicos do grupo. ?Foi um processo doloroso, não dá para esconder?, diz Regina Mello Cunha, neta do fundador e grande incentivadora da profissionalização. ?Mas foi também um fator de pacificação, e depois dele ficamos melhor estruturados para buscar custos menores e margens maiores?, acrescenta. Em casos clássicos de profissionalização, estabelecem-se regras rígidas para permitir que um parente se empregue na companhia. Normalmente, são exigências maiores do que as feitas a um candidato de fora da família. A Samello radicalizou. Todos os familiares estão proibidos de trabalhar na empresa ou se tornar fornecedor dela ? e ponto final. ?Ajuda o fato de agora sermos remunerados por quantidade de ações que temos. Não há por que buscar um salário?, afirma Wilton Mello, ex-diretor de marketing.

Por trás desse movimento está, é claro, uma chacoalhada comercial na companhia. À boca miúda, os rivais costumam dizer que ?a Samello parou no tempo?. Ocorreu que, na década passada, a empresa decidiu se concentrar no exterior (hoje ela exporta 65% da produção) e acabou perdendo 20 pontos de participação no mercado local. Isso enfraqueceu a marca. Apesar de fabricar para grifes como Daslu, Crawford, Fórum e VR, e ser reconhecidamente uma marca de alta qualidade, a Samello não desfruta mais da imagem que teve nos anos 80, quando virou sinônimo de sapato dockside. ?De fato, perdemos o glamour?, reconhece Cesar Scartezini, novo diretor de marketing trazido pelo CEO Furtado. Em conjunto com algumas pratas da casa recém-promovidas, os executivos traçaram um plano de correção de rota. Ele contempla duas frentes. A primeira foi a criação de uma nova linha de sapatos, batizada ?Maxx por Samello? (fotos à esquerda), mais moderna e atual, para ser vendida em lojas multimarcas. E a segunda será a reestruturação dos pontos-de-venda exclusivos, tornando-os mais fashion e sofisticados. ?Temos 28 lojas franqueadas atualmente. Serão 50 até 2008, vendendo sapatos de até R$ 1,5 mil.?, explica Scartezini. ?Investiremos R$ 4 milhões nesses dois pontos em 2005?, afirma Furtado, completando: ?A idéia é aumentar a produção em 45% este ano e equiparar o peso das vendas internas e externas. Mas isso apenas igualaria os números de 2001. Temos muito a recuperar?. Em outras palavras: Furtado ainda ficará muitas vezes descalço.