11/06/2018 - 7:43
Um surto de toxoplasmose de grandes proporções atinge a cidade gaúcha de Santa Maria. O município já havia virado notícia no País há cinco anos, quando o incêndio na Boate Kiss, em 27 de janeiro, deixou 242 mortos e 680 feridos. Causada por um protozoário, a doença traz mais riscos de complicações para pessoas que estão debilitadas (transplantados, pacientes que tomam quimioterápicos e remédios para algumas doenças autoimunes, como artrite reumatoide), gestantes e pessoas que apresentam problemas oculares.
São pelo menos 510 casos confirmados da doença pelas secretarias municipal e estadual, incluindo 2 abortos, 2 óbitos fetais e 2 casos congênitos, quando a doença é adquirida durante a gestação. Há ainda 212 casos em investigação, dos quais 133 em gestantes, 1 aborto e 17 bebês. O quadro, que configura o maior surto da doença no País, começou a ser identificado em abril e levou médicos e autoridades sanitárias a mudarem a política de atendimento e até mesmo a aconselhar casais a adiarem os planos de gravidez.
Em meio ao drama vivido pelos pacientes, uma caçada em busca da origem do surto teve início. Entre as principais suspeitas está a contaminação da água. Há confirmação da infecção em vários bairros da cidade, a 292 km de Porto Alegre. Mas outros fatores estão em análise, como a contaminação de frutas, verduras e carnes. “Nenhuma hipótese está descartada. Temos muitas dúvidas e nenhuma resposta”, admite a secretária municipal de Saúde de Santa Maria, Liliane Mello Duarte.
Na sexta-feira, uma equipe do Ministério da Saúde destacada para investigar as causas do surto retornou a Brasília, levando na bagagem questionários feitos com pacientes.
Foram quase dois meses de trabalho. Com a lista de mais de 50 perguntas, equipes procuram identificar comportamentos em comum para chegar à fonte. “Ali estão contidas questões como os locais onde alimentos são adquiridos, as refeições que a pessoa faz fora de casa, os locais que frequenta e consome água, além da residência”, afirma Alexandre Streb, superintendente de Vigilância em Saúde de Santa Maria, que coordena as investigações.
Enquanto as respostas não chegam, famílias são aconselhadas a tomar uma série de medidas de prevenção. Consumir apenas água fervida, lavar também com água filtrada os alimentos, evitar ingerir verduras cruas e carnes de procedência duvidosa ou pouco cozidas. “Mas até quando as pessoas vão evitar esses alimentos?”, indaga a educadora física Andressa Messias.
Por ser uma doença negligenciada e pouco notificada, as estatísticas oficiais sobre toxoplasmose são pouco confiáveis. “Mas os números eram significativamente menores, 15, 20 casos por ano. Não se ouvia falar com preocupação da doença por aqui”, afirma Streb. A médica Paula Flores Martinez acredita que o aumento de casos de forma tão rápida esteja associado ao agente da doença. “Existem três genótipos de toxoplasmose. Mas há possibilidade de haver genótipos mistos. Avalio que isso pode estar acontecendo.”
Amostras de material genético foram retiradas de fetos e enviadas para a análise. “Somente então poderemos saber um pouco mais do que está ocorrendo”, afirma a infectologista. Não há, porém, risco de casos se espalharem por outras cidades. “Exceto na gestação, não há transmissão de uma pessoa para outra.”
Diante do aumento expressivo do número de casos, o protocolo de atendimento para pacientes foi alterado. Exames nas gestantes, antes feitos no primeiro e no último trimestre de gestação, agora são mensais. Em bairros que concentram maior número de casos suspeitos, postos de saúde realizam mutirões para o atendimento de pacientes.
Moradora do bairro Tancredo Neves, um dos pontos com maior número de casos em Santa Maria, Andressa Messias sabe pela própria experiência a dimensão dos danos da toxoplasmose. Grávida de dois meses, no início de março ela começou a sentir fortes dores de cabeça e enjoos. Foi a três médicos e o diagnóstico era sempre o mesmo: reflexos da gravidez. “Mas sabia que algo estava errado.”
Como outras gestantes, Andressa foi recrutada para fazer o teste de toxoplasmose. O resultado, positivo, saiu em 17 de abril. “Entrei em pânico. Havia ficado dois meses sem nenhum tratamento, sabia das consequências para o bebê.” Menos de uma semana depois, desconfiada, ela resolveu fazer um ultra-som. O bebê já havia morrido. Com mais de quatro meses de gestação, ela precisou fazer o parto induzido. “Tive todas as dores, as contrações. Mas saí de lá sem um bebê. Apenas com um vazio enorme que não sei quando será curado.”
Incerteza
A cidade de mais de 278 mil habitantes vive na busca por respostas. “Temos muitas pistas, mas nenhuma certeza”, admite Alexandre Streb, superintendente de Vigilância em Saúde de Santa Maria. Testes realizados na água que abastece a cidade até agora deram negativo para toxoplasmose.
Jéssica dos Santos, engenheira química da 4ª Coordenadoria Regional de Saúde do Rio Grande do Sul, afirma no entanto que o resultado negativo está longe de descartar o risco de água – nem a ideia de coletar o lodo existente nas caixas d’água de residências de pessoas que tiveram a infecção confirmada pode ser suficiente. “A estimativa é de que 60% dos testes feitos para detecção de protozoários em água sejam falso negativo. O exame é pouco preciso”, afirma Jéssica.
Streb conta ainda que um trabalho de georreferenciamento está em curso para identificar casa a casa os pacientes com a doença e encontrar pontos em comum. Além disso, a pesquisa levará em consideração as obras viárias que estão em curso na região. “O objetivo é ver se, em algum ponto, estruturas possam ter sido danificadas.”
Coletas também foram feitas em amostras de frutas e verduras comercializadas na cidade. Cultivos hidropônicos foram analisados. E estudos laboratoriais começam a ser delineados. Uma das propostas é fazer experimentos com porcos e galinhas. Eles receberiam amostras de água para verificar se também são infectados pelo protozoário. A estratégia foi adotada em Santa Isabel do Ivaí (PR), que na década passada enfrentou um dos maiores surtos de toxoplasmose da história mundial, com 484 casos confirmados.
O delegado da 4ª Coordenadoria Regional de Saúde do Rio Grande do Sul, Roberto Shorn, diz que a companhia de abastecimento se comprometeu a realizar uma limpeza em seus reservatórios centrais. Mas Jéssica alerta que o sistema doméstico de filtragem não é suficiente para barrar a passagem do protozoário. “As partículas são pequenas”, conta. Daí a necessidade de se ferver a água.
Para a médica infectologista da Secretaria de Saúde de Santa Maria, Paula Flores Martinez, seria preciso também se analisar o sistema de distribuição. “É como o corpo humano: o problema pode não estar no coração, mas nas veias.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.