19/10/2022 - 3:08
“Bakhmut é Ucrânia”. A mensagem patriótica aparece em vários monumentos da cidade no front leste da guerra, um dos últimos pontos onde os russos permanecem na ofensiva. Mas nem todos pensam da mesma maneira na região.
O mercado de Bakhmut, uma localidade que tinha 70.000 habitantes antes da guerra, serve para comprar ou trocar quase tudo, de produtos frescos até roupas de inverno. Mas também para que os moradores desta cidade politicamente dividida controlem uns aos outros.
Yulia deixa o local, assim como os demais, quando os bombardeios ficam cada vez mais próximos. Mas esta mulher de 46 anos, que não revela o sobrenome por medo de represálias, acusa o exército ucraniano pelos disparos.
“Não entendo por que a Ucrânia está destruindo suas cidades. Ouvi dizer que a Ucrânia está fazendo isso para garantir que a Rússia não receba nada de volta”, disse
Ela reconhece que “a agressão procede completamente do lado russo”, mas considera que a Ucrânia deve aceitar e depor as armas.
Esta moradora de Bakhmut é mais uma a aceitar teoria da conspiração divulgada em dezenas de canais no Telegram que afirma, entre outras coisas, que a Ucrânia destrói voluntariamente suas cidades antes de perdê-las.
Nestes grupos, o discurso não é ativamente pró-Rússia, mas é abertamente anti-Ucrânia.
Trata-se de um equilíbrio delicado para evitar problemas em um país que não persegue o crime de opinião, mas tem uma lei contra a desinformação e os meios de informação virtuais.
– “Uma ucraniana normal” –
No principal grupo de Telegram de moradores da capital regional, “Eu amo Kramatorsk”, entre publicações sobre os cortes de gás ou a limpeza das folhas das ruas, alguns celebram sutilmente os ataques recentes contra Kiev.
Uma publicação sobre os ataques recebeu centenas de “curtidas”, mas também dezenas de comentários indignados.
A convivência entre cidadãos pró-Ucrânia e pró-Rússia é uma realidade há vários anos na região, embora a guerra registre atualmente o momento mais crítico desde a explosão do conflito em 2014 entre o governo de Kiev e rebeldes separatistas.
Lessia, uma comerciante de 46 anos que não deseja revelar o sobrenome, vende biscoitos em uma tábua de madeira. Até fevereiro, quando começou a invasão, ela dirigia um próspero negócio têxtil com 16 funcionários, alguns deles “separatistas”, conta.
“Alguns fugiram para a Rússia pensando em voltar rapidamente, caso Bakhmut caísse”, explica.
“Eu sou uma ucraniana normal, com um filho no exército ucraniano”, resume a mulher, que não julga seus funcionários, que considera “intoxicados” pela propaganda do governo russo.
“Mas para eles eu sou uma ‘banderivka'”, uma adepta de Stepan Bandera (1909-1959), figura emblemática dos nacionalistas ucranianos e da luta antissoviética, com muitos seguidores que colaboraram com os nazistas.
– “O lado errado” –
Para acabar com a guerra o mais rápido possível e por um sentimento de pertencimento ao conceito de “mundo russo” promovido por Vladimir Putin, ou por laços familiares do outro lado da fronteira, uma parte dos habitantes desta região da Ucrânia aceita ou apoia a ideia de passar ao controle de Moscou.
Na parte destruída de Bakhmut, onde se observa uma sucessão de edifícios destruídos, Oksana e Oleksander oferecem ajuda aos vizinhos que “pensam parecido” para que recarreguem os celulares com um gerador.
Naquele dia, em plena batalha e durante bombardeios, o casal e dois amigos assistem em um aparelho conectado ao gerador a comédia “Mimino”, um cult soviético de 1977.
Os dois ucranianos nasceram em Donetsk, “capital” da autoproclamada república do Donbass que fica a 100 km de distância e teoricamente foi anexada à Rússia. Desde o início da guerra é impossível chegar à cidade a partir da Ucrânia.
“Para mim, a questão não é saber se estou do lado errado da fronteira ou não”, afirma Oksana.
“É o exército ucraniano que está do lado errado da fronteira. Não pedimos nada a eles, menos ainda que venham nos defender”, completa.