23/06/2025 - 6:29
Em entrevista à DW, Sergio Tutikian, ex-embaixador do Brasil no Irã, afirma que invasão americana ao Iraque em 2003 reforçou o peso da religião no país e descarta perspectiva de uma democracia iraniana.Sergio Tutikian era o terceiro-secretário na embaixada brasileira em Teerã quando foi convidado às comemorações dos 2,5 mil anos do Império Persa, promovida em 1972 pelo xá Reza Pahlevi. Nove anos depois, ele servia na embaixada brasileira em Bagdá, capital do Iraque, quando caças israelenses destruíram a planta nuclear de Ozirak e erradicaram o programa nuclear de Saddam Hussein. Em 1987, estava de volta ao Irã, desta vez como embaixador e sob o regime islâmico surgido após a derrubada do xá.
O gaúcho Sergio Tutikian, de 86 anos, embaixador aposentado e ex-chefe do Departamento de Oriente Médio do Itamaraty, é um dos diplomatas brasileiros com maior conhecimento e experiência na região. Neste domingo (22/06), em seu apartamento em Porto Alegre, ele conversou com a DW sobre a atual guerra entre Israel e Irã, alçada a um novo patamar com a intervenção dos Estados Unidos.
DW: O senhor servia na embaixada brasileira em Bagdá em 1981, quando Israel bombardeou o reator nuclear iraquiano de Ozirak e erradicou o programa nuclear de Saddam Hussein. Estamos vendo o mesmo filme no Irã? O país pode ter o destino trágico do Iraque?
Sergio Tutikian: Seria um perigo a repetição do que aconteceu no Iraque, que é praticamente uma continuação do Irã. A invasão americana [do Iraque, em 2003] só reforçou o peso da religião no país. No Iraque, há tropas americanas estacionadas, mas o primeiro-ministro despacha no Irã. Todos os lugares santos do islamismo xiita, como Kerbala, Najaf e mais dois ou três, estão no Iraque. Outra possibilidade é a crise se arrastar e contaminar os vizinhos. No Kuweit, metade da população é xiita, e no Bahrein, 90%. Toda a região da Arábia Saudita às margens do Golfo Pérsico é xiita. O Catar acaba de se manifestar qualificando o Irã de “nossa república irmã”.
O Irã sofreu uma série de baixas no alto escalão militar e no círculo de auxiliares do líder supremo, aiatolá Ali Khamenei, e teve, segundo o presidente americano, Donald Trump, suas principais instalações nucleares “obliteradas”. Quais são as opções de Teerã agora?
Certamente há muita diplomacia secreta envolvida. Antes de sábado [quando ocorreu o ataque dos Estados Unidos ao Irã], é certo que houve muitos contatos de bastidores. Integrantes do governo dos Estados Unidos disseram que Trump tinha avisado o Irã de que haveria bombardeio.
A negociação do acordo nuclear de 2015, por meio de diplomacia secreta, durou 20 meses. O governo iraniano certamente não deixou todos os mísseis balísticos na parte ocidental do país [que tem sido alvo praticamente exclusivo dos ataques israelenses e americano]. Israel e Estados Unidos estão sempre falando da região ocidental. Mas o Irã é um país muito grande, com 90 milhões de habitantes.
Em caso de queda do regime, o que aconteceria em seguida?
Pelo que conheço do Irã, haveria duas possibilidades: retorno da monarquia ou ditadura. O Irã é um império que ainda não se desintegrou, com muitas nacionalidades. Não vejo como provável a perspectiva de uma democracia iraniana. Isso não faz parte do modo de ser do povo iraniano. É verdade que são uma república, na qual judeus e cristãos têm representação no parlamento. Os judeus iranianos não têm sequer língua própria. Sua história remonta aos tempos bíblicos da rainha Ester, depois da libertação do cativeiro na Babilônia. Sempre vi sinagogas funcionando no Irã. O regime tem cuidado com essas minorias, porque a espionagem é muito grande.
Esses segmentos não favoreceriam uma mudança de regime?
Na Guerra do Irã-Iraque, na qual o exército iraquiano invadiu o Irã pelo Arabistão, povoado por árabes étnicos, os habitantes da região não aderiram ao agressor. O Iraque era um Estado laico e não era visto com bons olhos pelos árabes iranianos, que são xiitas. Se os aiatolás deixassem o poder, somente um xá [rei] ou um ditador teria força para se impor sobre as diversas etnias e comunidades linguísticas.
Outro desdobramento possível seria a desintegração, mas a Rússia não permitiria que isso acontecesse. Todas as nacionalidades presentes no Irã também têm peso na Rússia ou em países que fizeram parte da antiga União Soviética. É o caso do Azerbaijão, onde há 6 milhões de azeris. No Irã, são 20 milhões. É um vespeiro.
Israel e EUA justificaram os ataques alegando que precisavam impedir que o Irã tivesse acesso a armas nucleares. O senhor acha que esse era um cenário real, ou seja, o Irã estava a ponto de ter armas nucleares?
Não, não creio. Podia estar bastante adiantado [no desenvolvimento de capacidade nuclear], mas não acredito [que isso representasse um perigo imediato].
Supondo que o Irã tivesse adquirido capacidade nuclear, o senhor crê que o ataque se justificaria?
No Oriente Médio, armas atômicas só servem para dissuasão. Os Estados são tão próximos que, em caso de ataque nuclear, qualquer vento poderia fazer esse instrumento voltar-se contra quem o usasse. Eu estava em Roma em 1986, quando houve o desastre nuclear em Tchernobyl. A nuvem tóxica chegou à Itália, e ficamos sem poder consumir frutas e verduras.
Os países do Oriente Médio são muito próximos, seria uma espécie de suicídio coletivo. Lembro que, na Guerra Irã-Iraque, o Iraque usou armas químicas, e um vento contrário fez o gás atingir as próprias tropas iraquianas. Eu tinha amigos iraquianos no front, e alguns não podiam respirar, ficaram com diversas sequelas.
A retórica iraniana hostil a Israel, ameaçado de ser varrido do Oriente Médio desde que os aiatolás chegaram ao poder, assim como os gestos de desafio do regime iraniano à lei internacional e à estabilidade global, não justificam os ataques israelenses e americanos?
O Irã não é antissemita, e sim antissionista. Ele não admite o Eretz Israel [em hebraico, Grande Israel].
O regime iraniano é suicida ou a suposta busca por armas nucleares faria sentido dentro de uma estratégia peculiar?
Creio que faria sentido. No início da crise, o Paquistão ofereceu arsenal nuclear ao Irã para defesa. Isso desencadearia uma corrida, porque a Arábia Saudita iria buscar o armamento nuclear. O Irã é signatário do Tratado de Não-proliferação Nuclear.
Como a população iraniana e os países árabes estão reagindo ao conflito?
Estão reagindo mal. Essa confusão não interessa a eles, que preferiam o status quo. Não sei qual será a reação deles, especialmente da Arábia Saudita.
Como o que está acontecendo hoje no Oriente Médio pode respingar ou já está respingando no Brasil?
O principal impacto seria em caso de fechamento do Estreito de Ormuz [via por onde transitam navios vindos do Golfo Pérsico em direção ao Mar Arábico e é o gargalo para o transporte de petróleo mais importante do mundo]. Não lembro de ocasiões anteriores em que o estreito tenha sido obstruído. Durante a Guerra Irã-Iraque, havia muita sabotagem aos oleodutos. A administração do estreito é compartilhada entre o Irã e o sultanato de Omã. A área está minada. A ameaça de fechar pode servir como elemento de barganha, uma vez que atingiria em cheio a Arábia Saudita, o Iraque e os Estados do Golfo. Não sei qual seria a reação da China, que precisa muito do petróleo transitando pelo estreito.
O senhor acredita que os esforços diplomáticos da União Europeia podem surtir efeito neste momento?
Por enquanto, a reação desses países é de perplexidade. Não tiveram tempo de assimilar o que está acontecendo. Têm desconfiança de Trump e certamente estão incomodados, uma vez que estavam patrocinando iniciativas nesse sentido no momento em que os Estados Unidos atacaram o Irã.