Após 15 anos de trabalho, versão do tradutor Berthold Zilly deve chegar às livrarias europeias em agosto de 2026.Com a mesma grafia do português, o termo Sertão é definido pelo Duden, o mais importante dicionário da língua alemã, como uma “região intransitável, formada por mata seca e arbustos”. Curiosamente, a alusão do léxico à dificuldade na travessia se conecta com o enredo de Grande Sertão: Veredas (1956), de João Guimarães Rosa. Uma das principais obras da literatura brasileira, o romance tem programado para agosto de 2026, ano em que completa 70 anos, a publicação de uma nova tradução para o idioma de Goethe.

O lançamento está a cargo da editora Fischer Verlag, de Frankfurt, que confirmou à DW a previsão para a chegada da aguardada segunda versão em alemão. Após quase 15 anos de intenso trabalho, o tradutor Berthold Zilly concluiu, em meados de 2025, a empreitada de verter a história do jagunço Riobaldo e a inventiva linguagem de Rosa para a língua germânica.

O texto agora está em processo de revisão pelo coordenador do projeto, Sebastian Guggolz. Além dos últimos ajustes, deverão ser entregues, até o fim deste ano, complementos como glossário, notas e posfácio. “A gente está na reta final, e eu vou sentir um grande alívio. Já estou sentindo agora, porque o grosso já está feito”, diz Zilly, que recebeu a reportagem da DW na biblioteca de seu apartamento em Berlim, em agosto deste ano.

O romance do autor mineiro não foi o primeiro confronto de Zilly com o sertão literário. Em 1994, o hoje professor aposentado da Universidade Livre de Berlim e da Universidade de Bremen terminou outra difícil tarefa: traduzir Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, até então inédito na Alemanha. A versão, intitulada Krieg im Sertão (Guerra no Sertão, em tradução livre), recebeu elogios da crítica local e figurou em terceiro na lista dos melhores livros publicados no país naquele ano.

O currículo tradutório de Zilly também inclui os clássicos Lima Barreto e Machado de Assis, além de outro autor brasileiro conhecido por romper com os padrões da linguagem: Raduan Nassar. Apesar da experiência, o desafio de Grande Sertão: Veredas, iniciado ainda em 2011, foi de longe o mais difícil, diz o linguista.

Além da complexa e emaranhada prosa roseana, transfigurada no longo monólogo do narrador Riobaldo, Zilly também teve que se desvencilhar de uma sombra: a de Curt Meyer-Clason (1910-2012), o responsável pela primeira versão do romance na Alemanha. Era essa, na visão do próprio escritor mineiro, a “tradução-mãe” da obra, capaz de orientar outras traduções e de se colocar como ideal para o livro.

Ela saiu ainda em 1964, pela editora Kiepenheuer & Witsch, de Colônia, com o Grande Sertão de Rosa no título original, mas sem o complemento (e os icônicos dois pontos) Veredas. Já para a Fischer, a sugestão de Zilly é que a nova tradução se chame Grosse Sertão: Überquerungen (Grande Sertão: Travessias, em tradução livre).

Dois tradutores

Sem ter tido a mesma sorte de Meyer-Clason, que se correspondeu com Rosa, Zilly teve que lançar mão de outras estratégias para desvendar a linguagem daquele que foi considerado em 1999, pela Folha de S.Paulo, como o maior romance brasileiro.

Empreendeu viagens pelo sertão mineiro para visitar os cenários do livro e entender melhor o “mineirês”, e também fez contatos com Alison Entrekin, tradutora de Grande Sertão para o inglês e que também deve ser publicado no ano que vem pela editora Simon & Schuster. Quando as dúvidas sobre como transferir a estrutura linguística para o alemão apertavam, recorreu principalmente à versão de August Willemsen para o holandês (Diepe Wildernis: de wegen, de 1993), também influenciada por Meyer-Clason, mas que, segundo Zilly, “às vezes recorre nos mesmos erros”.

“Meyer-Clason foi um grande mediador das literaturas ibéricas na Alemanha. Conheci ele pessoalmente e sempre me dei bem com ele. Ele produziu um texto num alemão belíssimo, cativante. Popularizou até certo ponto o Sertão e a obra de Guimarães Rosa nos países de língua alemã. Talvez seja a influência dele a integração da palavra sertão nos dicionários alemães”, elogia Zilly.

O primeiro tradutor de Rosa para o alemão viveu no Brasil nos anos 1940, mas foi preso em Ilha Grande, acusado de espionagem para o regime nazista. Foi no cárcere que se apaixonou pela literatura brasileira e ibero-americana. De volta à Alemanha, virou uma “máquina de tradução”: verteu García Márquez, Clarice Lispector, Jorge Amado, entre outros, para o idioma.

Com Rosa, Meyer-Clason não foi apenas um tradutor. Chegou a intermediar os contatos do escritor mineiro com a editora alemã Kiepenheuer & Witsch, que, além de Grande Sertão, contratou a publicação de quase toda a obra roseana completa. Foi também crítico literário e assinou os principais artigos na imprensa na Alemanha sobre Guimarães Rosa.

No entanto, a estratégia de Meyer-Clason acabou, na opinião de Zilly, “simplificando demais” a poética do autor de Grande Sertão: Veredas. “É um estilo fácil de entender, que aplaina as dificuldades, que acaba com as polissemias, com os elementos chocantes, com o estranhamento. Isso tem o grande mérito de aproximar o Guimarães Rosa do leitor alemão. Mas Rosa queria exatamente o contrário: que a poética do estranhamento, do choque, da opacidade, do enigma, fosse reconfigurada pelos tradutores”, comenta.

Um exemplo é a icônica palavra “nonada”, que abre o monólogo de Riobaldo em Grande Sertão. Na sua tradução, Meyer-Clason abre mão da expressão mais famosa do léxico roseano para substituí-la por uma frase, “Hat nichts auf sich”, que, no português, significaria algo como “não significa nada”.

Zilly, por outro lado, decidiu-se, por enquanto, por criar outro neologismo: “Na-nix-ja”, com os termos em alemão para “sim” (ja) com “nada” (nix, coloquial para nichts), precedidos pela sílaba na, que mantém o mesmo ritmo do original em português roseano. A “transcriação”, porém, ainda aguarda o palavra final da editora.

Sertão alemão

No percurso de Guimarães Rosa, a Alemanha é quase uma vereda (ou travessia). Foi o idioma de Thomas Mann que abriu os caminhos literários do então jovem estudante de medicina. O poliglota e autodidata Rosa estreou no mundo editorial em Belo Horizonte, aos 20 anos, com uma tradução do alemão para o português do artigo A organização científica em Minas Gerais (Die Organisation der Wissenschaft in Minas Gerais, de Otto Quelle) para o periódico oficial do governo mineiro, ainda em 1928.

Mais tarde, nos anos 1940 e já diplomata, o escritor serviu como cônsul do Itamaraty em Hamburgo durante a Segunda Guerra Mundial. Nessa época, ele e a futura esposa Aracy de Carvalho auxiliaram ao emitir vistos para o Brasil a judeus perseguidos pelo Terceiro Reich.

O episódio em Hamburgo foi tema do documentário Outro Sertão (2013), de Adriana Jacobsen e Soraia Vilela – que foi colaboradora da DW –, que recuperaram uma rara entrevista do autor mineiro numa TV da Alemanha, em 1962.

Nela, Guimarães Rosa responde em português às perguntas do apresentador alemão sem esperar o intérprete, exibindo o domínio, pelo menos na escuta, do idioma. E afirma, entre outras coisas, que Riobaldo seria “uma espécie de uma Fausto sertanejo”. É uma citação ao personagem da obra homônima de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) que, assim como o protagonista de Grande Sertão, flerta com o diabo.

O pacto (ou não) com o coisa-ruim é tema de outra importante obra da literatura alemã: Doutor Fausto (1947), de Thomas Mann, cuja relação com Grande Sertão foi tema de doutorado de Marcel Vejmelka, professor de tradução literária na Universidade de Mainz.

O pesquisador concorda com Zilly, de quem foi aluno em Berlim, sobre a simplificação excessiva da tradução de Meyer-Clason do Grande Sertão e também do pioneirismo do alemão na divulgação da obra de Rosa na Alemanha. “Ele não tem essa textura densa da escrita roseana, em que forma e conteúdo entram num jogo fascinante em que é impossível parar o trabalho de significado: uma única frase da obra do Guimarães já fez surgir várias teses de doutorado”, diz.

Segundo ele, os elogios do mineiro à versão podem ser explicados pela paixão de Rosa com o idioma. Mas não só isso. “O domínio do alemão do Guimarães Rosa não é confirmado. Não se pode falar que ele era fluente, que entendia todas as nuances da língua. Inclusive há estudos sobre o tempo dele em Hamburgo que mencionam que a Aracy falava muito melhor que o marido”, diz o professor.

“Mas acho que ele admirava tanto a língua, que aprendeu autodidata, que não tinha como ver um texto dele em alemão de forma objetiva – para ele, parecia tão denso e fantástico que ele nem enxergava essa simplificação”, complementa.

No levantamento do professor de Mainz, o Grande Sertão: Veredas de Meyer-Clason teve oito edições no país – incluindo uma na Alemanha do Leste –, numa tiragem total de cerca de 30 mil livros. “Falando em penetração de mercado, é pouco. Também não houve recepção ou influência do Rosa em escritores alemães, o que é uma pena. A maior parte foram do meio acadêmico e especializado, em que o próprio Meyer-Clason vai escrever artigos e dar entrevistas”, explica Vejmelka.

Ele lembra que houve uma esperança de que Rosa fosse incluído no boom da literatura latino-americana dos anos 1970, já que a Alemanha recebia com entusiasmo autores do realismo mágico como García Márquez e Jorge Luis Borges – o que não se confirmou.

No entanto, o contexto atual pode favorecer o ressurgimento de Guimarães Rosa na Alemanha, diz ele. “Esse jogo do bem e do mal, de Deus e diabo, no cenário do sertão mineiro, se revela universal. É fora do tempo e do lugar, porque funciona em qualquer momento”, afirma Vejmelka.

“Não sei se vai acontecer, porque depende muito da dinâmica do mercado, mas a mera presença de uma nova tradução, em uma editora renomada e forte com a Fischer, dá uma certa esperança”, completa ele.

E remete ao Krieg Im Sertão de Euclides da Cunha também traduzido por Berthold Zilly. “Os Sertões teve uma recepção muito maior do que se imaginava, porque era um documento histórico sobre uma visão eurocentrista de um Brasil do século 19 que ninguém sabia que existia aqui. Dialogou com pessoas do mundo intelectual que não tinham a ver com o Brasil nem com a América Latina. Mas tinha a questão universal, e isso é algo que uma nova tradução de Grande Sertão pode conseguir”, conclui o professor da Universidade de Mainz.