02/03/2022 - 22:35
Ex-agente do Serviço de Inteligência, Vladimir Putin nunca escondeu o seu apreço pela União Soviética e, em inúmeras ocasiões, referiu-se à desintegração do bloco como sendo “o maior desastre geopolítico do século”. Para ele, o “império” era a tradução dos desígnios da Grande Rússia dos czares, cujo título oficial, não por acaso, era Soberano de toda a Rússia: a Grande, a Pequena, e a Branca. Segundo as próprias palavras do presidente russo, relatadas pela agência estatal de notícias RIA Novosti, o fim da URSS continua sendo uma tragédia para a maioria dos cidadãos há 30 anos. Putin viveu a derrota como uma humilhação do maior país do mundo pelo Ocidente; decidiu então restaurar o que podia ser recuperado.
Neste episódio ucraniano não há mocinhos, só bandidos. E Putin, apesar de ter se tornado ídolo da extrema-direita mundial e de uma parte da esquerda brasileira, é um deles. Temos de dar nome aos bois: Putin é um ditador sanguinário, que se perpetua no poder (podendo permanecer até 2036), que persegue homossexuais, que censura e fecha a mídia independente, que escolhe os candidatos que podem ou não disputar as eleições, que prende e tortura aqueles que protestam, sem processo nem julgamento. Putin é sinônimo de barbárie. Não se pode esquecer nem perdoar a atitude russa no episódio ocorrido numa escola em Beslan, na Ossétia do Norte, em que morreram 334 pessoas sendo 156 crianças. O governo russo foi condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Não se pode esquecer o massacre dos muçulmanos da Chechênia e do Daguestão, duas das 19 repúblicas ocupadas pela Rússia (21 com o Donbass e Lugansk). Nem tampouco as armas químicas fornecidas a Baschar el-Assad, utilizada contra a sua própria população.
Putin não sabe o que é democracia, não respeita o Estado de Direito, os Direitos Humanos, não tem nenhum compromisso com a justiça social. Ele só entende a linguagem da violência.
É uma grosseira mentira alegar que a operação militar na Ucrânia se explica pela necessária desnazificação do país. Aí reina a mais absoluta má fé. Se por um lado é verdade que há grupos neonazistas armados na Ucrânia, como as Brigadas Azov, que ingressaram no exército, de outro o governo ucraniano não é nazista. Também neste quesito o presidente russo está longe de ser ideologicamente um santo; ele sim é um nazifascista, ainda mais se levarmos em conta a sua proximidade com os partidos europeus de extrema-direita.
Como exemplo vale citar a campanha eleitoral francesa de 2017. Em março daquele ano, dias antes do segundo turno da presidencial, Marine Le Pen, candidata do partido Front National, neofascista, foi recebida no Kremlin por Vladimir Putin. Além desse apoio simbólico, importante para Le Pen que assim mostrava não estar isolada na comunidade internacional, Putin interveio junto a bancos russos para que financiassem a campanha de Le Pen. O Front National recebeu um empréstimo de 9,4 milhões de euros do First Czech-Russian Bank (FCRB), a ser reembolsado até 2038. Em Portugal, o Chega só sobrevive graças ao dinheiro russo.
Paralelamente hackers russos, acusados de terem elos próximos com os serviços de segurança, atacaram o partido La Republique en Marche, de Emmanuel Macron, e acusaram o então candidato do de ter contas em paraísos fiscais e ser gay.
Nas eleições legislativas de 2017, os serviços de informação alemães descobriram relações secretas entre a Rússia e a extrema-direita neonazista, cujo partido Alternativa para a Alemanha (AfD) entrou no Bundestag, o Parlamento alemão. Em fevereiro daquele ano, Frauke Petry, então chefe do AfD, foi convidado pelo presidente da Douma, a Câmara baixa do Parlamento russo.
Em agosto de 2018, Putin foi o convidado de honra do casamento de Karin Kneissl, ministra austríaca das Relações Exteriores, do Partido da Liberdade da Áustria (FPÖ), de extrema-direita, e dançou a valsa nupcial com a noiva.
Muito próximo de Putin, Aleksander Dugin, teórico da chamada direita iliberal, híbrido de neofascismo e stalinismo, viajou o mundo, da Europa aos Estados Unidos, passando pelo Brasil, para manter contato com personagens ligados ao antiglobalismo e à Alt Right. O chamado Duguismo influenciou os protestos de junho de 2013 no Brasil, onde foi criada a Nova Resistência, anti-lulista, fruto de sua matriz estadunidense, o New Resistance, abertamente pró-Bolsonaro e pró-Trump.
Na França, junto aos antissemitas e polemistas Alain Soral e Dieudonné, inúmeras vezes condenados por racismo, Dugin fundou o site de extrema-direita Egalité et Réconciliation.
Conselheiro de Putin, espécie de Olavo de Carvalho moscovita, o também intitulado filósofo criou uma doutrina segundo a qual os Estados Unidos e a Europa representam a encarnação do mal e, por isso, devem ser contidos. Para ele, todas as superpotências devem ser destruídas, num mundo em que existam múltiplos centros de poder.
Putin ainda ajudou a financiar o Partido Nacional-Democrata da Alemanha (NPD, neonazista), o Movimento da Resistência Nórdica (NMR), fundado na Suécia, abertamente racista, antissemita e hostil à l’UE, e até mesmo o movimento dos gilets jaunes, os coletes amarelos, que pediram a demissão de Emmanuel Macron. Um dos líderes do movimento, Xavier Moreau, em dezembro de 2019, instalou em plena avenida dos Champs Elysées um colete amarelo com uma bandeira do Donbass independente.
A Liga italiana, Jobbik na Hungria, o Partido para a Independência do Reino Unido (UKIP), são outras agremiações de extrema-direita com quem Vladimir Putin mantém relações diretas. Sem falar na intervenção russa para apoiar Donald Trump e e em prol do Brexit. Ou no convite feito a Jair Bolsonaro.
O presidente russo é idolatrado pela Internacional de extrema-direita, que tem em Steve Bannon o seu líder mais conhecido.
Seu projeto se resume à frase que tornou famoso Donald Trump, apenas mudando o país: Tornar a Rússia grande de novo.
Putin nunca escondeu que seu sonho é reconstruir o império soviético, cujo colapso teria sido, segundo as suas próprias palavras, o maior desastre do século 20.
Essa é a melhor explicação para se compreender a invasão da Ucrânia pelas tropas russas.
Os preparativos para uma operação militar desse tipo, dessa grandeza, levam muito tempo, até anos, o que mostra que não havia urgência em agir para evitar o ingresso da Ucrânia numa OTAN em “estado de morte cerebral”, nas palavras de Macron. As negociações nem sequer estavam abertas. Mas mesmo que estivessem, antes disso Putin podia ter apelado para a Conferência sobre a Segurança e Cooperação na Europa. Não o fez. Podia ter apelado para o Conselho da Europa. Não o fez. Preferiu aguardar uma janela de oportunidade para invadir seu vizinho e assim colocar novamente a Ucrânia na zona de influência russa. Foi o que fez.
Putin não está preocupado com as consequências, pois aposta que não haverá resposta militar do Ocidente. A não ser que na ânsia de reconstruir a Grande Rússia e acordar do sonho como Czar, decida instalar seus mísseis em território ucraniano ou dar um “passeio” militar pela Polônia. O pavio é curto e o risco de uma guerra mundial não pode ser ignorado. Ninguém estará a salvo. Ninguém, nem mesmo o Brasil, que terá então de dizer claramente de que lado está.
Até lá, o presidente russo acredita que a geopolítica mundial já terá entrado numa nova bipolaridade, com a superpotência imperialista norte-americana à frente do mundo ocidental, China e Rússia como contraponto imperialista do outro lado. Restará ao Brasil a difícil construção de um não alinhamento idealizado por Lula.