30/07/2020 - 17:35
Meca do comércio internacional de flores, a Holanda comercializa diariamente flores francesas na própria França. Para contrabalançar esta hegemonia e vender buquês com uma pegada de carbono menor, cresce na Europa o fenômeno das ‘slow flowers’.
Nos subúrbios de Amsterdã, o incessante vai e vem das esteiras foi retomado nas últimas semanas, à medida que o comércio mundial vai voltando após a paralisação provocada pela pandemia do novo coronavírus.
“Neste mercado, comercializamos 30.000 variedades diferentes”, explica, orgulhoso, Michel Van Schie, porta-voz da cooperativa Royal Flora Holland, gigante holandesa da horticultura em que circulam diariamente flores de todo o mundo.
As cifras variam, segundo as fontes, mas Thierry Louveau, chefe da filial francesa de outra gigante holandesa, a FleuraMetz, assegura que “70% da produção mundial de flores circula pela Holanda, embora não seja produzida necessariamente na Holanda”.
A história de amor da Holanda com a horticultura é ancestral. No século XVII, provocou inclusive o primeiro crack de uma bolsa da história, quando a especulação baseada no comércio de bulbos de tulipas fez disparar seus preços antes de desabar.
“A aceleração”, segundo Louveau, remonta aos anos 1950, com a criação de mercados de venda mediante um sistema de leilões eletrônicos invertidos, nos quais o preço cai progressivamente até encontrar comprador. São gerenciados por grandes cooperativas.
“A Holanda soube se organizar para comercializar a flor, concentrando a produção, a logística, criando cooperativas que facilitam a comercialização”, avalia.
Uma supremacia fomentada pelo Estado holandês, que ainda subvenciona o consumo de energia das estufas.
A Holanda também pode se apoiar em uma produção descentralizada o ano todo em países do hemisfério sul, com mão de obra barata. Algumas vezes, chega a ser tão crucial para a economia destes países quanto é para a da Holanda.
É o caso do Quênia, onde as flores são cultivadas antes de serem enviadas à Holanda e distribuídas por todas as partes do mundo.
“O setor emprega diretamente 200.000 pessoas em fazendas e representa mais de um milhão de empregos induzidos, que são o sustento de 4 milhões de pessoas”, explica à AFP Clement Tulezi, presidente do Conselho de Flores do Quênia, uma organização que supervisiona o setor hortícola do país.
– A logística holandesa –
Sobretudo dispõe de uma logística muito eficaz, com vários caminhões que percorrem o continente europeu. É difícil competir com ela.
Para ser comercializadas, “há flores produzidas na França, que vão a Amsterdã e voltam para a França”, explica Benjamin Perot, um dos cofundadores em 2016 da Monsieur Marguerite, uma floricultura eco-responsável, que cita por exemplo parte da produção francesa de peônias.
Outro exemplo: “A tulipa de Nice produzida na região de Nice (sudeste da França) é comprada por um atacadista, vai fisicamente para a Holanda, onde é avaliada no mercado de leilões, que fixa seu valor e logo é redistribuída” na França, às vezes inclusive em Nice, explicou Hortense Harang, cofundadora da plataforma Fleurs d’Ici.
Diante desta concorrência, muitos produtores de flores franceses tiveram que fechar ou mudar de método.
“Contam o preço do terreno que te pressiona a partir, a dureza do trabalho, as aposentadorias tão baixas que a tentação de vender é grande, e a concorrência. A gente nunca eleva os preços!”, resume Marie-Line Lanari, ex-produtora de cravos que migrou para os lírios em suas terras na Côte d’Azur.
Val’Hor, a organização interprofissional francesa de horticultura, estima em 85% a proporção de flores importadas. “Em 1972, havia 30.000 cultivos de horticultura na França, hoje há 3.500”, lamenta Hortense Harang.
– “Slow flowers” –
Assim como outros, Harang quer frear e, se possível, reverter essa tendência e reduzir a pegada de carbono das flores, incentivada pela demanda crescente dos consumidores desde a epidemia de COVID-19.
“O que emerge da crise é a vontade de comprar produtos franceses, de comprar localmente, um fenômeno que é como uma réplica do da alimentação, se chama ‘slow flowers’, vem dos Estados Unidos”, confirmou à AFP o presidente da Val’Hor, Mikaël Mercier.
É um desafio, segundo Perot: “Há atacadistas que tentam fazer com que aumente a proporção de flores francesas, mas hoje em dia é muito complicado garantir [um produto] 100% francês”.
A rede territorial falha.
Recorrendo ao mercado holandês, um florista de Biarritz (sudoeste da França) pode ter hoje, apertando um botão “qualquer flor” em sua loja no dia seguinte, uma rapidez “impensável” em uma França “não estruturada suficientemente”, segundo Perot.
Para contrabalançar este ponto fraco, Harang criou, com a start-up Fleurs d’ici (Flores daqui) um software de gestão integrada (ERP) que conecta em França, Bélgica, Itália e Reino Unido “um horticultor a um florista independente, uma unidade de distribuição descarbonizada (bicicleta ou veículo elétrico) e um cliente local”.
O fenômeno da relocalização não se limita à França: no Reino Unido, líder do movimento na Europa, a cooperativa Flowers from the farm, que reúne produtores de todos os tamanhos, contava em 2018 com 400 e 500 membros. Agora, diz ter “mais de 800”.
Segundo Harang, a Itália, onde surgiu o movimento “slow food”, e a Bélgica também estão “totalmente nessa”.
As start-ups e os floristas não são os únicos a se posicionarem para atender a esta demanda de flores “locais” na Europa, que também atrai os próprios holandeses.
Para rentabilizar o transporte, “pensamos em adicionar (nos caminhões) plantas verdes francesas às flores francesas”, explica Louveau, do grupo holandês FleuraMetz. Um projeto que estava previsto para março/abril passado, mas que teve que ser adiado devido à crise sanitária.
A paralisação da atividade econômica pela epidemia ressaltou nos últimos meses os riscos de ruptura na rede de abastecimento em um mundo ultraglobalizado e pôs na moda a produção local, industrial, farmacêutica e têxtil, o desejo de dar prioridade às flores produzidas na França, destaca Sylvie Robert, diretora da associação Excellence Végétale, que desenvolve o selo de qualidade Fleurs de France, criado em 2015.
“Vamos chegar a cerca de 2.000 empresas envolvidas”, diz Robert, segundo quem nos primeiros seis meses de 2020, “redes de distribuição importantes”, como Auchan, se somaram à iniciativa.
Depois do pico da crise sanitária, “não é um pequeno auge, mas um grande auge”, com “até dez pedidos por dia” a partir do mês de abril contra “um ou dois” normalmente, destaca.
– A rosa, um espinho em circuitos curtos –
Há um obstáculo: a rosa, que representa “45% do mercado das flores”, lembra Louveau.
Ele não nega a “vontade de flores de temporada”, mas está convencido de que o consumidor “vai querer presentear rosas o ano todo”. E, segundo a Fleurs d’Ici, na Europa, a temporada das rosas começa em maio-junho e termina em novembro.
Um ponto que leva os floricultores quenianos a se manter otimistas. “É possível que não vejamos um crescimento de dois dígitos como na última década”, afirma Tulezi, mas os produtores quenianos “sempre serão mais eficazes”.
Sobretudo porque agora o florista não é obrigado a indicar a procedência das flores, “diferentemente dos alimentos”, lamenta Masami Lavault, floricultora urbana em Paris.
Embora o começo possa ser difícil, “há uma tendência real à instalação de produtores jovens”, avalia Perot.
– “Mais perto das pessoas” –
Masami Lavault é pioneira na relocalização das flores na França. Ao amanhecer, vai com uma podadora a um campo de 1.200 m2, atrás do cemitério de Belleville, em Paris, cortar cabelos-de-vênus, cosmos, calêndulas… Entre 200 e 250 espécies.
“É demais: em geral, na agricultura tentamos não complicar nossa vida. Mas para mim é muito importante ter uma grande variedade, pela escolha que permite aos clientes e também porque um lugar onde há muitas plantas diferentes é mais resiliente”, explica.
Dois dias por semana, a jovem na faixa dos 30 anos colhe flores multicoloridas, tratadas sem agentes químicos, para vendê-las a floristas e particulares.
“O mais interessante é fazer vendas diretas. Para as pessoas é genial poder vir aqui, ver como funciona, ver um campo de flores (…) O objetivo da micro-agricultura é estar o mais perto possível das pessoas que vão consumir o produto” explica.
ngu-smt-fal-clr/ak/dp/erl/mar/mvv