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Evitou-se o pior, por enquanto. Não haverá apagões, por enquanto. O corte burro, o desligamento, o caos urbano e produtivo foi afastado. Por enquanto. No início da tarde de sexta-feira, quando o ministro Pedro Parente anunciou as medidas de emergência para contornar a crise energética, o País deu um suspiro de alívio ? a medula das medidas, afinal, consistiu de uma combinação de tarifas e cotas que vai castigar o bolso dos consumidores e o caixa das empresas, mas não vai inviabilizar sua existência — embora deva produzir um impacto inflacionário de 0.15 no IPCA deste ano. Seu objetivo é reduzir em 20% o consumo global de energia. ?O que mais temíamos era a anarquia do corte. Com as cotas podemos conviver?, disse a DINHEIRO, no calor da hora, o engenheiro Paulo Ludmer, porta-voz da associação dos grandes consumidores industriais de energia. Outro representante empresarial, Joseph Coury, estava um pouco alarmado com as datas de referência para traçar as novas metas de consumo ? em média, 80% do gasto do ano passado. ?Desde maio, junho e julho de 2000 houve um forte crescimento da economia e do consumo de energia?, raciocinava o líder das micro, pequenas e médias empresas. ?Vamos cortar 20% e mais o crescimento dos últimos 12 meses.? Em troca por esse sacrifício, o ministro-chefe da Casa Civil prometeu apenas ?lutar? contra a possibilidade de apagões no futuro. ?Acreditamos que as medidas tomadas hoje, se cumpridas, serão suficientes para evitar os cortes?, disse Parente. ?Mas não podemos garantir.? Ele explicou que o apagão foi descartado pelos técnicos porque ?no momento? era impossível implementá-lo sem ?grande desorganização dos sistemas essenciais?. Por enquanto.

Por mais que o presidente e seus auxiliares dourem a pílula, o fato é que na semana passada a economia brasileira mergulhou num túnel escuro do qual só deve sair, se tudo der certo, em dois ou três anos. Esse é o prazo para que entrem em operação uma dezena de termelétricas planejadas pelo setor privado e para que deslanchem os investimentos de quase R$ 16 bilhões programados por Furnas para os próximos seis anos ? e que só agora, com a faca roçando no peito, devem ser finalmente autorizados pelos contadores da equipe econômica, cuja prioridade número 1 tem sido manter os limites de gasto acertados com o Fundo Monetário Internacional. ?Os investimentos devem voltar nesse quadro de excepcionalidade?, disse a DINHEIRO o ministro do Planejamento, Martus Tavares. Com isso talvez se possa cobrir os 10 mil MW de déficit no quadro energético brasileiro, recolocando a 11a economia do mundo na rota da normalidade e do crescimento. Mas até lá as coisas serão ruins.

?Este ano e o próximo serão muito conturbados?, constata o professor Maurício Tomalsquim, especialista em energia da Coope, no Rio de Janeiro. Ele e outros acadêmicos não encontram um evento no passado que ajude a dimensionar o efeito da crise atual sobre o cotidiano econômico do Brasil. Mesmo a crise do petróleo, que explodiu em 1973, tinha outro caráter: o principal insumo energético havia se tornado muito mais caro, mas existia. Agora, a eletricidade simplesmente não existe. Pela mão de Fernando Henrique o Brasil voltou 50 anos, para o período rural em que não se erguiam fábricas por falta de eletricidade. Desde Lucas Lopes, o principal assessor econômico de Juscelino Kubitschek, o País havia se acostumado ao binômio energia e transporte como preocupação fundamental do Estado. A industrialização de São Paulo, por exemplo, só decolou na década de 50 porque o governador Lucas Nogueira Garcez ordenou a exploração hidrelétrica da bacia do Rio Paraná. Assim nasceu a tradição, que durou até 1983, de um Estado que antecipava a demanda elétrica em cerca de 10 anos, abrindo espaço para o investimento privado e o desenvolvimento. Agora, acusa o professor Luiz Gonzaga Belluzzo, da Unicamp, o País está sendo comandado por uma equipe econômica que não tem laços, conhecimento ou interesse na economia real. ?O País vai ficar no escuro, sob aplausos do FMI, porque fizemos direitinho a lição de casa, cortando investimentos fundamentais em infra-estrutura?, indigna-se o assessor do falecido Dilson Funaro. ?Fernando Henrique assumiu como o Rei Sol e vai terminar como Rei da Vela.?

A essas críticas, o governo tem respondido de duas formas. A primeira é isentar-se, com mais ou menos elegância, da culpa pela calamidade que caiu sobre o País, e que segundo o IBGE deve roubar 1,5% de crescimento do PIB este ano. A outra é sinalizar, com as medidas de sexta-feira, que não houve e talvez não haja apagões, e que o pior pode ser evitado com um pouco de austeridade, algum engenho e mais um mergulho no bolso do empresariado e do consumidor de classe média. O primeiro terá uma energia limitada e cara, e o segundo vai pagar multas domésticas de até 200% do valor das suas contas. Embora o presidente Fernando Henrique tenha tentado, com o discurso mea-culpa de sexta-feira, consertar a frase infeliz do início da semana ? ?fui pego de surpresa? ? ainda persiste em Brasília a intenção de atirar no colo do distinto público a responsabilidade pela crise mais anunciada da história econômica brasileira. Esse intento é tão mais absurdo quando se sabe que o Brasil ocupa apenas a 83a posição no ranking do consumo per capita de energia, embora esteja entre as maiores economias do planeta. Em média, os brasileiros consumiram 2.157 kwh em 1999, várias vezes menos do que os habitantes do Suriname, África do Sul, Trinidad Tobago e até Suriname. ?A idéia de que consumimos muita energia é falsa?, afirma o engenheiro Roberto D?Araújo, diretor do Instituto de Desenvolvimento do Setor Elétrico.

Foi preciso que Paulo Pereira da Silva, o Paulinho da Força Sindical, pedisse em praça pública a cabeça do ministro Pedro Malan para que o País percebesse o óbvio: embora 850 mil empregos possam ser queimados pela crise da energia, ninguém no primeiro escalão está ameaçado de perder sua vaga. E muito menos se fala em demissão voluntária. Na linha de tiro encontra-se, solitariamente, o tímido presidente da Agência Reguladora de Energia, José Mario Abdo, que teria incorrido na ira do presidente. FHC cogitou no meio da semana de pedir a exoneração de Abdo ao Congresso, tamanha a sua irritação com o auxiliar. Seu genro, David Zylbersztajn, travou com Abdo uma tensa discussão, na qual cobrou dele a ação de regular a oferta e a demanda de energia. O primeiro genro disse que Abdo havia falhado no essencial e recomendou que pedisse o boné. Em vez de capitular, Abdo foi atrás de Pedro Parente, que tem ligações com o PFL que apadrinha Abdo. O ministro da Casa Civil agiu como bombeiro: tranqüilizou Abdo e convenceu seus interlocutores no governo de que uma batalha intestina a essa altura do campeonato poderia piorar e muito a situação. Na sexta-feira, essa crise havia amainado, e no Planalto se dizia que o processo de exoneração não estava mais sendo cogitado. Abdo, por seu lado, também não pediria demissão. Assim, mesmo esse tristonho bode expiatório chegou ao final da semana empregado.

?Se eu fosse o ministro Malan estaria dormindo pouco. E não por preocupação, mas por culpa?, dispara Horácio Lafer Piva, o presidente da Fiesp. O jovem líder dos empresários de São Paulo está irritado com a inação do governo. Também está preocupado com os efeitos da escassez de watts sobre os investimentos e temeroso de que as medidas anunciadas na sexta-feira estejam, por razões políticas, situadas aquém do necessário. Desde setembro do ano passado, a organização dos industriais tem denunciado regularmente a iminência de uma crise energética. A mensagem alcançou Brasília, mas foi respondida oficialmente com uma acusação ministerial de alarmismo. ?É inacreditável que tenhamos chegado a uma situação dessas depois de tantos alertas?, reclama Piva. A ele tem chegado, diariamente, notícias de empresas que estão cancelando a abertura e a ampliação de negócios. ?Estão abortando investimentos deste ano e dos próximos dois ou três anos?, avisa. Na semana passada, reuniões de empresários com técnicos da distribuidora de energia CPFL, do interior de São Paulo, revelaram um clima de estupefação. ?Não vou poder ligar as máquinas que acabei de importar??, perguntou um empresário ao diretor Augusto Rodrigues, da CPFL. ?Parece que não?, ouviu em resposta. Na quarta-feira passada, com a publicação da famigerada Resolução Número 1 ? que veta o fornecimento de energia para novos empreendimentos comerciais e industriais no Sudeste ? o Brasil passou a ser o único país capitalista do mundo que proíbe novos investimentos. Está em companhia de entidades exóticas como Afeganistão e Coréia do Norte.

A verdade é que o presidente Fernando Henrique continua às escuras. Nem ele, nem os políticos, burocratas, professores, técnicos e palpiteiros em geral que se juntaram às hostes do Ministério do Apagão ? também chamado de Câmara de Gestão da Crise de Energia — sabem se o plano de travessia da crise vai dar certo. É certo que se apóia em duas pernas (um tarifaço para quem exceder limites de consumo e uma campanha publicitária de incentivo à racionalização), mas há dúvidas sobre se vai ficar de pé. ?Apagão é coisa de comunista?, disse, o ex-esquerdista e professor da Universidade de Salvador, James Correia. O argumento colocou Correia na equipe fixa do CGCE e ajudou a convencer Zylbersztajn de que haveria outra saída para a crise além do salto no escuro. Junto a outros colegas, Correia foi ungido como um dos principais artífices do mapa que, em tese, guiará o País até o final do túnel. Mas um alto dirigente de uma geradora de energia da região Nordeste disse a DINHEIRO que, sem apagões em cidades inteiras, ?é quase impossível sair da crise?.

De acordo com este ponto de vista, o governo só estaria, com suas primeiras medidas, empurrando para a frente a verdadeira solução. É um jogo em que a sociedade pode ser responsabilizada se a primeira etapa de racionamento fracassar ? abrindo a porta para um apagão sem culpa do governo. Sempre haverá um funcionário do poder central para sugerir que o curto-circuito se deu por falta de colaboração de empresários, trabalhadores e do povo em geral. Enquanto isso, a cada mês, sem contar os efeitos provocados pela seca, as turbinas instaladas nas usinas consomem 7% da água represada.

Tantos movimentos não foram capazes de tranqüilizar Fernando Henrique quanto ao futuro de sua popularidade. Sabe-se, em seus domínios, que há, agora, e haverá, no futuro próximo, ?mau humor” na opinião pública. A redução em 6% do consumo de energia no Estado de São Paulo, registrado pela distribuidora Eletropaulo nas duas últimas semanas, foi comemorada como um sinal de que a população vai atender ao chamamento da racionalização. Mesmo assim, ninguém podia afirmar ao certo a quantos graus pode subir a irritação da sociedade. O que se dizia é que o governo está diante do mais complexo problema de comunicação já enfrentado na era FHC ? e que para superá-lo prepara-se uma campanha publicitária ?de orientação?, que vai custar R$ 30 milhões e pode incluir em uma de suas peças uma imagem antiga de Antônio Ermírio de Moraes, um dos críticos mais ácidos do governo na questão energética. Seria um escárnio.

O PLANO BUSH
O plano energético anunciado pelo presidente norte-americano George W. Bush é polêmico e tem deixado os ambientalistas de cabelo em pé. Mas ele demonstra duas coisas: que nos EUA há governo e que ele age com antecedência. Enquanto as medidas de FHC terão como conseqüência a redução do crescimento do PIB, comprometendo empregos e a expansão industrial, o pacote de 105 medidas anunciado por Bush na última quinta-feira (17) é preventivo. Visa impedir que a crise que assola a Califórnia se estenda para todo o país e comprometa o crescimento futuro da economia. Para construir 1.300 novas usinas de energia até 2020, ele propôs a liberação de US$ 3 bilhões em incentivos fiscais.

ELE TINHA RAZÃO

Leonardo Attuch

  

Parecia um outro País. Na quarta-feira, 16, enquanto os ministros que fazem parte da comissão do apagão trombavam para definir as medidas do racionamento, o governador mineiro Itamar Franco, um dos maiores adversários políticos do governo federal, iniciava as obras da hidrelétrica de Funil, com o desvio do Rio Grande. Situada na região de Lavras, no sul de Minas, Funil é uma das seis usinas que estão sendo construídas com recursos da Cemig, em projetos que somam R$ 2,5 bilhões.

Em seu discurso, Itamar criticou a privatização dos ativos já existentes, mas defendeu a entrada do capital privado em novos projetos, como forma de garantir mais investimentos. Em todas as obras da Cemig, a estatal é minoritária. Em Funil, por exemplo, a empresa tem 49% do projeto e o maior investidor é a Vale do Rio Doce. Itamar disse ainda que a obra só foi possível porque, no início de seu mandato, o governo mineiro contestou o acordo de acionistas da Cemig, que dava poderes maiores a um bloco de acionistas minoritários liderado pela empresa americana AES. Para entender esse conflito, vale a pena voltar um pouco no tempo. Em 1997, o ex-governador mineiro Eduardo Azeredo vendeu, por US$ 1,1 bilhão, 33% das ações da empresa a um consórcio formado por AES, Southern e Opportunity. O acordo de acionistas dava aos sócios estratégicos as principais diretorias da empresa e ainda o poder de veto em investimentos acima de R$ 1 milhão — qualquer investimento, portanto. Logo que assumiu, em 1999, Itamar contestou o acordo de acionistas na Justiça, pela via institucional, e até agora tem sido vitorioso. Na época, o mercado esbravejou, as ações desabaram e até mesmo o presidente do Banco Central, Armínio Fraga, sugeriu em um seminário em Nova York que os investidores internacionais priorizassem projetos em outros Estados, evitando Minas Gerais. Hoje, com o modelo de privatização do setor elétrico abandonado pelo próprio governo federal, os fatos parecem dar uma certa razão ao governador, que chegou até a ser chamado de pateta das alterosas. Detalhe: há duas semanas, a AES, a mesma empresa que Itamar afastou do comando da Cemig, anunciou a suspensão de investimentos de US$ 2,5 bilhões, justamente o que não se deve fazer em um cenário de racionamento. Ainda bem que, em Minas, a geração de energia não depende mais deles.