Na noite do domingo, dia 5 de outubro, o jornal alemão Süddeutsche Zeitung, liderando um consórcio de 96 jornalistas investigativos em todo o mundo, revelou algo que une personagens díspares como a rainha da Inglaterra, o ministro da Fazenda Henrique Meirelles, o roqueiro irlandês Bono Vox, vocalista do U2, o ministro da Agricultura, Blairo Maggi e o secretário de Comércio dos Estados Unidos, Wilbur Ross. Todos eles, ao lado de outros 150 mil nomes de pessoas e de empresas, tinham parte de seu dinheiro em paraísos fiscais. Batizada Paradise Papers, a investigação lançou um jorro de luz sobre um aspecto pouco conhecido das finanças internacionais: como os muito ricos investem seu dinheiro, de modo a reduzir o apetite do Fisco.

O vazamento de mais de 13 milhões de documentos digitais, representando 1,4 terabytes de dados, ocorreu a partir dos arquivos de duas empresas de advocacia, o escritório Appleby, fundado na ilha caribenha das Bermudas em 1898, e seu concorrente, o Asiaciti Trust, de Cingapura. Desde 1950, o Appleby se especializou em montar estruturas complexas para reduzir impostos a pagar e para facilitar os complexos movimentos de sucessão corporativa. Quando aparecem juntas, as palavras “paraíso” e “fiscal” levam a pensar em malfeitorias. A razão para isso é que esses países de impostos baixos e sigilo garantido guardam tanto o dinheiro dos justos quanto os recursos dos pecadores. Mesmo assim, colocar seu dinheiro neles não é crime. “É uma alternativa perfeitamente legal, desde que seja declarada à Receita Federal e ao Banco Central”, diz o tributarista Roberto Justo, sócio do escritório Choaib, Paiva.

Ilhas Cayman: A rainha da Inglaterra, Elisabeth II, (à esq.) alocou £ 10 milhões em um fundo na ilha caribenha. No memo paraíso fiscal, o nome do ministro da Agricultura, Blairo Maggi, (à dir.) aparece como beneficiário de uma empresa no mesmo paraíso fiscal

Há dois caminhos principais para manter bens no exterior. O primeiro é abrir uma companhia “além da fronteira”, conhecida pelo termo inglês offshore. A outra é contratar uma pessoa ou empresa de confiança para cuidar de determinado patrimônio, o chamado trust. Há milhares de escritórios que prestam esses serviços, e o Appleby é um dos maiores. Entre seus clientes está Meirelles. Em dezembro de 2002, antes de assumir a presidência do Banco Central, ele criou, em Bermuda, a Sabedoria Foundation. Documentos divulgados pelo jornal alemão mostram que a empresa foi criada “especificamente para fins de caridade”. Ao registrar a estrutura, Meirelles investiu US$ 10 mil, quantia declarada em seu Imposto de Renda, seguindo a lei. “O correto é declará-los no Imposto de Renda ou na declaração de investimentos no exterior enviada para o Banco Central”, diz Justo. “Cada advogado faz de uma maneira.”

O trust não é comum, mesmo entre os brasileiros endinheirados. Sua utilização mais frequente é para fins sucessórios, pois essa estrutura oferece a vantagem de dispensar o processo do inventário. O contratante assina, junto com o contrato, uma carta de intenções em que estabelece quais são os herdeiros e como os bens serão repartidos. “O trust é indicado para aquelas pessoas que têm valores significativos para serem distribuídos entre os herdeiros”, diz Justo. O custo de montar essas estruturas é elevado, geralmente um percentual dos bens, e as contas começam com 1% do total colocado no trust, mais uma tarifa anual. “Por isso, essa opção só compensa se houver patrimônio fora do país de origem, ou então algum imbróglio relativo à herança”, diz José Henrique Longo, sócio do PLKC Advogados.

É possível resolver esses problemas com as companhias offshore. Nelas, os herdeiros estão dispensados de pagar imposto ao receber os bens. Herdar custa caro. Em alguns casos, o Fisco americano pode ficar com até 50% do valor deixado pelos falecidos. No Brasil, quem herda tem de pagar um imposto estadual, o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD). As alíquotas oscilam entre 4% e 8% do total deixado em testamento. O trust, e as companhias offshore em paraísos fiscais, ajudam a evitar essa mordida. Essa foi uma das justificativas para a estratégia de Meirelles, que montou uma empresa para receber seus bens após sua morte. Seu desejo é que o dinheiro financie projetos educacionais no Brasil (veja quadro ao final da reportagem).

Ligação entre EUA e Rússia: o presidente da Rússia, Vladmir Putin, (à esq.) e seu cunhado, Kirill Shamalov (à dir.) são sócios da empresa de gás Sibur, ligada à companhia de transporte marítimo Navigator Holdings, cujo um dos acionistas é o secretário de Comércio dos EUA, Wilbur Ross

A abertura de uma offshore pode ser vantajosa para aqueles que possuem ou pretendem adquirir empresas fora do Brasil – especialmente nos Estados Unidos. “Quando se aplica o dinheiro declarado em ações americanas, por exemplo, é preciso pagar imposto toda vez que um resgate é finalizado. Mas se esses investimentos estiverem no âmbito da empresa, o detentor paga imposto somente sobre o lucro da companhia”, diz Justo. Foi o caso do ministro da Agricultura, Blairo Maggi. Seu nome surgiu como beneficiário de uma companhia aberta nas Ilhas Cayman. A sociedade foi firmada entre uma de suas empresas, a Amaggi, e a subsidiária brasileira da Louis Dreyfus Commodities, uma líderes mundiais na venda e no processamento de produtos agrícolas. A estratégia permitiu pagar menos impostos. Procurado, o ministro informou, por meio de sua assessoria, que “não é e nunca foi beneficiário direto da companhia Amaggi Louis Dreyfus Zen-Noh International Ltda”, nome da companhia sediada em Cayman.

Os vazamentos mostraram que, no mundo das altas finanças, todos se conhecem. Um bom exemplo é o de Wilbur Ross, secretário de Comércio dos Estados Unidos. Homem de confiança de Donald Trump, o multimilionário Ross é um acionista importante da companhia de transporte marítimo Navigator Holdings. Algo pouco relevante, não fosse por um fato demonstrado pelo vazamento. Outro acionista relevante da empresa de navegação é a empresa russa de gás Sibur. A companhia, com sede em Moscou, tem como sócios Kirill Shamalov, cunhado do presidente da Rússia, Vladmir Putin.

As conexões também envolveram a família real britânica. A rainha Elisabeth II alocou £ 10 milhões em fundos nas Ilhas Cayman e Bermudas, enquanto o herdeiro de seu trono, o príncipe Charles, investiu, em 2007, US$ 3,9 milhões de dólares em quatro fundos registrados também nas Ilhas Cayman. Por meio de um deles, Charles adquiriu ações no valor de US$ 113,5 mil dólares da empresa sustentável Forestry Management Ltd., especializada na negociação de créditos de carbono. A princípio, nada de errado com o investimento. Porém, levantou suspeitas o fato de o príncipe ter exigido sigilo total sobre a operação, especialmente pelo fato de que, no momento do investimento, havia uma campanha ativa para que as florestas também fossem consideradas geradoras de créditos de compensação de carbono.


Meirelles e a herança para a educação

O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, divulgou uma nota oficial sobre a Sabedoria Foundation, cuja existência foi revelada pelos documentos que vazaram na Paradise Papers. Abaixo, a íntegra da nota:

A Sabedoria Foundation é uma estrutura filantrópica, gerida de maneira independente e autônoma por um Conselho Curador. Foi criada com a única finalidade de receber parte da herança do Sr. Henrique Meirelles, quando ele falecer, para aplicar esses recursos em atividades beneficentes no setor de educação no Brasil. A entidade foi constituída quando o Sr. Meirelles dirigia uma organização internacional e morava nos Estados Unidos. Por isso, ela foi criada no exterior. Os advogados de Meirelles eram americanos e trabalhavam habitualmente com aquelas jurisdições. A doação para constituição da entidade foi declarada no Imposto de Renda. A estrutura filantrópica está inativa e assim deverá permanecer até o falecimento do Sr. Meirelles.