dono_01.jpg

Santos (de óculos) e alguns sócios na Uniforja: “Agora que sou dono não há um sábado e domingo que não passe na fábrica. Cada peça é como se fosse um filho meu”

 

 

Há exatamente 25 anos, em maio de 1978, os operários da Scania, em São Bernardo do Campo, entraram na fábrica como sempre faziam e cruzaram os braços como nunca haviam feito. Era o estopim de um novo tipo de mobilização sindical. Aguerrido, profundamente enraizado nas linhas de montagem, esse movimento modificou a face do País e inaugurou a trajetória de um presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. No próximo dia 29, Lula desembarca em seu berço político para visitar a Uniforja, uma metalúrgica de Diadema. Na ocasião, o presidente dará a partida em um outro movimento, diferente do anterior, mas que, como ele, poderá transformar o mapa da produção no Brasil. A visita de Lula jogará luzes sobre um fenômeno em fase de expansão na região. Sem alarde, grupos de operários reúnem-se em torno de uma cooperativa e assumem a gestão de empresas mergulhadas em enroscos financeiros. Com tal iniciativa, preservam os postos de trabalho, mantêm máquinas em funcionamento e continuam recolhendo impostos. Nos últimos cinco anos, 13 cooperativas nasceram na região. Em todas elas, a nova gestão salvou a companhia e multiplicou o volume de negócios. Nas diretorias, os sobrenomes Silva e Santos prevalecem, macacões substituem ternos e gravatas, e assembléias de operários tomaram o lugar das reuniões de acionistas.

 

dono_03.jpg

Santos (de óculos) e alguns sócios na Uniforja: “Agora que sou dono não há um sábado e domingo que não passe na fábrica. Cada peça é como se fosse um filho meu”

Atualmente existem mais de 7,5 mil cooperativas espalhadas pelo País, com cerca de 5,3 milhões de cooperados e 171 mil trabalhadores contratados, segundo a Organização de Cooperativas do Brasil. Juntas elas são responsáveis por 6% do PIB brasileiro e US$ 1 bilhão anuais de exportações. A grande novidade é que o conceito, antes concentrado no setor agrícola e de serviços, chega finalmente ao mundo da produção ? e com força arrebatadora. ?As cooperativas de produção podem representar 30% da economia brasileira?, afirma José Perez Feijóo, que em junho assume a presidência do sindicato dos metalúrgicos do ABC. ?Isso já acontece na Itália e, em proporções maiores, em regiões da Espanha.?

Poderia ser uma estimativa exagerada se o movimento não contasse com apoio e incentivo do governo federal. Na visão dos recém-chegados a Brasília esse modelo pode alavancar o nível de emprego e se tornar alternativa para empresas em dificuldades. Na campanha eleitoral, Lula o utilizou como uma de suas bandeiras. Agora, o incentivo virá na forma de dinheiro vivo. Lula anunciará a concessão de um financiamento de R$ 20 milhões do BNDES para a Uniforja. O dinheiro será utilizado para a aquisição do parque industrial da Conforja, metalúrgica que a cooperativa administra desde 1997.

 

dono_04.jpg

Heli Alves, da Unisol: “Os operários têm dificuldade em aceitar o papel de patrões”

Na ocasião, a empresa teve a falência decretada e só não foi lacrada porque os funcionários não deixaram. A maioria deles não quis fazer parte da cooperativa. ?Em apenas um dia, 120 trabalhadores deixaram a companhia?, recorda José Domingos dos Santos, presidente da Uniforja. ?A situação era desesperadora.? Nos três primeiros meses, embora a fábrica continuasse em operação, nem um só centavo entrou no caixa. Durante esse período, os funcionários trabalharam apenas para honrar encomendas de R$ 1 milhão, já quitadas pelos clientes. A travessia foi dura, mas o porto seguro compensou. Este ano, o faturamento atingirá R$ 80 milhões, contra R$ 10 milhões em 1999. Os 232 cooperados ganharam a companhia de 213 companheiros contratados pela
CLT ? ou seja, o quadro de pessoal dobrou.

Atualmente, a retirada mensal dos donos da Uniforja está 15%
acima da média salarial da região, graças ao retorno do lucro.
?Apenas uma parte das sobras financeiras, de 15%, vai para o operário?, explica Santos. ?O restante é reservado para investimentos e para compor o capital.? Aos 47 anos, o programador de produção Santos, mineiro de Montes Claros, ?mudou de vida? depois de se tornar um operário patrão. ?Agora que sou dono, não há sábado e domingo em que eu não passe na fábrica?, conta. ?Cada peça é como se fosse um filho para mim.?

Anos atrás, uma frase dessa jamais sairia da boca de um metalúrgico. Seria considerada uma heresia numa região cuja marca registrada era a intensa militância sindical. Justamente aí encontra-se um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento das cooperativas. ?Os operários têm uma tremenda dificuldade em aceitar o papel de empreendedor?, analisa Heli Vieira Alves, diretor da Unisol, entidade de apoio às cooperativas criada por sindicatos do ABC. ?O primeiro impulso deles é utilizar todo o dinheiro excedente para aumentar a retirada.? Por isso, Feijóo tem na gaveta um plano que pretende colocar em prática tão logo assuma a presidência do sindicato. O primeiro passo será a criação de uma escola de cooperativismo. ?Vamos utilizar experiências bem-sucedidas para ensinar o que deve ser feito e fracassos para mostrar o que deve ser evitado?, diz Feijóo.

Sem dinheiro. O segundo passo será firmar acordos com universidades e centros de pesquisa para garantir a atualização tecnológica das cooperativas. Terceiro ponto: garantir linhas de financiamento. ?As próprias companhias vão adquirir um vigor que poderão criar uma cooperativa de crédito empresarial?, diz ele.
?Será a cooperativa das cooperativas.? A secura de dinheiro tornou-se o mais torturante problema para as recém-nascidas cooperativas. ?Até hoje, os clientes compram matéria-prima para nós, pois não temos crédito na praça?, diz Paulo Souza, presidente da Plastcooper, fabricante de produtos de plástico. Os operários assumiram o volante da então Petit Plásticos em abril de 2000. A empresa estava praticamente paralisada, sufocada por um endividamento que a havia levado à falência. Dos 120 funcionários, sobraram os 53 que se uniram na Plastcooper para tocar a Petit. Os números melhoraram. Mesmo assim, as portas dos bancos continuam fechadas. ?Dia desses, pedi um empréstimo e o gerente disse que só se a empresa tivesse um dono?, conta Souza. ?O que é mais seguro? Emprestar para um só dono ou para 53?? Souza tem outros desafios. Um deles é se livrar da dependência de um só cliente. Hoje, toda a produção é adquirida por um distribuidor de produtos de plástico. Ao mesmo tempo, a empresa precisa juntar dinheiro para adquirir os equipamentos, hoje arrendados junto à massa falida.

Esse é o roteiro desenhado pelo sindicato dos metalúrgicos desde o nascimento da primeira cooperativa. ?Primeiro, analisamos a viabilidade do produto e se há domínio da tecnologia necessária para mantê-lo no mercado?, diz Luís Marinho, presidente do sindicato dos metalúrgicos e idealizador das cooperativas. A seguir, os operários arrendam os equipamentos. A partir daí, os resultados terão de garantir a retirada dos cooperados, os investimentos e a poupança para a compra do patrimônio junto à massa falida. ?A maior parte dos lucros é destinada a esse último item?, afirma Aziel Pereira da Silva, presidente da Uniwídia, fabricante de ferramentas industriais de Mauá, município do ABC paulista.

A fábrica está sob controle dos trabalhadores desde março de 2000. A produção triplicou, as contas estão equilibradas e parte dos clientes foi recuperada. A retirada de cada um dos 42 cooperados não ultrapassa o salário médio da região, e o futuro continua incerto. Vale a pena? Com a palavra, Alexandre Rodrigues da Silva, de 26 anos. ?Temos espinhos no caminho. Antes eu era empregado, entrava às oito e saía às cinco. Hoje, não tenho horário, sempre tem umas coisinhas a mais para fazer. Além da ferramentaria, tenho que dar uma ajudinha no acabamento. Mas, sabe? Está melhor assim. Agora, além de operário, eu sou patrão.?