Barroso vota por proibir retorno imediato de crianças quando houve violência contra a mulher. Posição acena às “Mães de Haia”, separadas dos filhos ao voltar ao Brasil.O Supremo Tribunal Federal (STF) começou a votar na quarta-feira (13/08) a validade das regras atualmente vigentes sobre o sequestro internacional de crianças, previstas pela Convenção de Haia. Estão sendo julgadas duas ações diretas de inconstitucionalidade que pedem que seja revista a repatriação imediata de menores de idade se eles forem vítimas, direta ou indiretamente, de violência doméstica.

Relator da ação, o ministro Luís Roberto Barroso votou por uma interpretação alargada das normas que proíbem o retorno imediato de crianças que tenham sido subtraídas do seu país de residência habitual.

A posição ecoa pedidos de especialistas em direito da família, grupos da sociedade civil e do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à corte. O julgamento deverá ser retomado na próxima quarta-feira (20/08).

Com mais de cem países signatários, a Convenção de Haia prevê que um menor de 16 anos retirado do país de residência habitual por um genitor, sem autorização do outro, deve ser retornado. A exceção é quando houver “risco grave” de “perigos de ordem física ou psíquica” ou “situação intolerável”, sem especificação sobre violência doméstica ou de gênero.

Pela nova interpretação, a repatriação poderá ser impedida quando houver “indícios comprováveis” de violência no ambiente doméstico, mesmo que a vítima direta seja outro membro da família. Em geral, mulheres.

“Mães de Haia”

Em 90% pedidos de repatriação recebidos pelo Brasil, são as mães que levam os filhos ao país sem o consentimento do outro genitor, de acordo com dados de uma pesquisa feita para a Conferência de Haia sobre Direito Internacional Privado (HCCH, na sigla em inglês).

As regras se aplicam mesmo que a mulher tenha cruzado fronteiras para escapar de abusos domésticos por companheiros ou ex-companheiros. As mães que são separadas dos filhos passaram a se autointitular “Mães de Haia”.

Para Maria Berenice Dias, vice-presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), os pedidos por uma nova interpretação propõem uma “mudança de paradigma” que privilegia o melhor interesse da criança.

“A criança que presencia violência contra a mãe necessariamente também é vítima de violência. Isso causa sequelas muito severas”, afirma. O IBDFam colabora com o debate no STF enquanto amicus curiae.

Manter bem-estar diplomático

Um dos grandes desafios, no entanto, repousa sobre a dificuldade das mulheres em denunciar e comprovar a violência doméstica, sobretudo fora do Brasil. Assim como outras autoridades e especialistas, Barroso reconheceu em seu voto que as brasileiras no exterior sofrem com barreiras linguísticas, institucionais e culturais na condição de imigrantes, além de frequente isolamento das suas redes de apoio.

Entretanto, tanto o ministro quanto a Advocacia-Geral da União (AGU), que também defende a proibição da repatriação nesses casos, argumentam pela importância de ter verificadas as alegações da vítima por “indícios comprováveis”.

Uma das preocupações é não gerar mal-estar com outros países e evitar a interpretação de que o Brasil não cumpre as normas consagradas na Convenção de Haia desde 1980.

No Brasil, a palavra da vítima é suficiente para instaurar ou manter medida protetiva em casos de violência doméstica. Também tem peso comprobatório especial, sobretudo quando corroborada por depoimentos de testemunhas e laudos policiais.

AGU passa ao lado das mães

Enquanto o Brasil tem uma posição de vanguarda no debate sobre a reinterpretação do tratado, a AGU atuou pela primeira vez neste mês em defesa de uma das Mães de Haia. Até então, a instituição representava os genitores que ajuizavam ações pedindo o retorno da criança – quase sempre, os pais.

Ao viajar da Inglaterra ao Brasil com um filho de um ano, ela foi alvo de uma ação movida pelo pai da criança, com base nas normas da Convenção de Haia. No curso do processo, ela comprovou ser vítima de repetidos episódios de violência doméstica.

Ao comentar o caso, Ney Wagner Gonçalves Ribeiro Filho, advogado da União que atua com o tema, disse que “a adesão a uma convenção internacional não significa uma subordinação automática ao Estado estrangeiro requerente.”

Em 2024, o Brasil recebeu 77 pedidos para repatriar menores a outros países, dos quais 42 foram deferidos, de acordo com dados fornecidos pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública à DW.

Também tramita um projeto de lei no Senado sobre o tema. Para outubro, está prevista em Fortaleza a segunda edição do Fórum sobre Violência Doméstica e a Convenção da Haia de 1980, evento internacional em favor da revisão da interpretação do tratado.

(com Agência Brasil, ots)