29/10/2003 - 8:00
O economista americano Joseph Stiglitz é uma pessoa incomum. No seu currículo de 48 páginas, disponível na internet, a informação de que recebeu o Prêmio Nobel de Economia em 2001 aparece de forma quase imperceptível, no pé da página 3. Também no seu novo livro de quase 400 páginas ? Os exuberantes anos 90, que será lançado na próxima semana pela Companhia das Letras ? são raros os auto-elogios. Para quem, como ele, participou na linha de frente do governo Bill Clinton, na condição de presidente do Conselho de Assessores Econômicos, não é pouca modéstia. As duas gestões democratas antes de George W. Bush foram um marco de prosperidade para os países desenvolvidos. Clinton presidiu sobre a Nova Economia, a farra das Bolsas, a multiplicação das fusões, os lucros inusitados e os bônus extraordinários. Foi também em seu período que a economia global cresceu
a passo acelerado no Primeiro Mundo e se criaram, apenas
nos Estados Unidos, 18 milhões de empregos. Economistas
egressos do governo brasileiro em anos recentes têm folhas de serviços muito mais modestas e mesmo assim vestem a toga de salvadores da pátria. Stiglitz não. Com um senso crítico espantoso, quase depressivo, ele dedica seu livro a esmiuçar o que estava errado na festa dos anos 90. Ou, para usar suas palavras, a localizar ?as sementes da destruição? que permitiram a derrapagem das economias emergentes e, logo depois, a explosão da bolha de investimentos nos EUA ? os dois eventos que fecharam o ciclo de prosperidade dos anos 90 e levaram o mundo ao estado mais ou menos recessivo em que se encontra hoje.
Do martelo crítico de Stiglitz não escapa nada, mas ele sublinha a incapacidade da equipe econômica de Clinton em resistir à pressão do mercado. Wall Street e as empresas pediam menos regulamentação e se inclinavam, cada vez mais, à euforia financeira. Em vez de agir como contrapeso à rave corporativa, o grupo da Casa Branca deixou-se levar pela música. As normas de auditorias foram relaxadas, operações financeiras foram subtaxadas e criou-se um ambiente de ?crescimento fácil? das fortunas pessoais e empresariais, no qual a esperteza financeira prevalecia. Um pouco como está acontecendo no governo Lula, as promessas sociais que haviam levado Clinton ao poder foram trocadas pela decisão de reduzir o déficit.
Deu certo por um tempo, pondera Stiglitz, mas a partir de 2000 os indicadores mergulharam: a Bolsa perdeu US$ 8,5 trilhões, houve o mais longo declínio da produção industrial desde 1973, o número de desempregados de longo prazo dobrou e 1,3 milhão de americanos caíram abaixo da linha de pobreza. A bolha, afinal, explodiu. Enquanto isso, os EUA empurravam ao resto do mundo a receita da sua efêmera prosperidade. Através do FMI e do Departamento do Estado, os países emergentes foram obrigados a aplicar as fórmulas mágicas da abertura financeira e da austeridade fiscal. O resultado, diz Stiglitz, foi um desastre que se estendeu da Rússia ao Brasil, começando na Ásia em 1997. Somente a China, que se manteve afastada da doutrina americana, deu-se bem. Seu balanço: ?Se o boom foi maior do que na maioria dos outros anos do período do pós-guerra, a queda da atividade econômica também foi pior?. Parece um exagero. A crise do petróleo em 1973 e a elevação dos juros com Paul Volker, no final dos anos 70, criaram recessões mais profundas e duradouras.
Infelizmente Os Anos 90 não é um livro de memórias. Como integrante do governo Clinton e depois economista-chefe do Banco Mundial, entre 1997 e 2000, Stiglitz teria muito a contar. Ele estava presente, por exemplo, à ocasião quase mítica em que Greenspan pronunciou o discurso da ?exuberância irracional?: o presidente do FED falava sobre a queda de preços no mercado imobiliário do Japão, mas os presentes e a imprensa entenderam a mensagem do oráculo. Episódios como esse, porém, são raros. O autor escolheu agir como observador privilegiado, não indiscreto. Concentrou-se na análise ? densa e luminosa, mas também desorganizada e parcial ? do período que viveu como protagonista. O leitor certamente se beneficiaria de um pouco mais de edição e um pouco menos de opinião. Mas, assim como os anos 90, também o professor Stiglitz é um pouco caótico.