Milhares, inclusive brasileiros, são vítimas de tráfico humano e submetidos a condições degradantes de trabalho no Sudeste Asiático. A ação de países para resgatar e conter ação criminosa será suficiente?O Sudeste Asiático se tornou um polo de golpes cibernéticos, para onde centenas de milhares de indivíduos são atraídos com promessas falsas de emprego. Ao chegarem em países como Mianmar, Laos e Camboja, são tratados como escravos, forçados a trabalhar até 18 horas por dia em atividades fraudulentas, roubando bilhões de dólares por meio de romances falsos, investimentos, criptomoedas e jogos de azar ilegais.

Em Mianmar, país devastado por uma guerra civil desde 2021, complexos para a prática de crimes cibernéticos estão concentrados em cidades fronteiriças, sobretudo com a Tailândia.

Numa dessas centrais de golpes estavam os brasileiros Phelipe de Moura Ferreira e Luckas Viana dos Santos, que conseguiram fugir do cativeiro em 11 de fevereiro, após três meses trabalhando sob ameaças e tortura. Eles estão de volta ao Brasil, mas há mais brasileiros vítimas de tráfico humano na região, em condições degradantes, que incluem choques elétricos, espancamentos e exercícios físicos extenuantes.

“Uma das principais preocupações das embaixadas do Brasil no Sudeste Asiático tem sido o aumento significativo do número de brasileiros vítimas de tráfico para exploração laboral na região, informou o Itamaraty, por meio de nota. “As vítimas, em sua maioria jovens com conhecimento de informática, são recrutadas através das redes sociais com falsas promessas de emprego em ‘call centers’ ou empresas de tecnologia na Tailândia.”

Recentemente, a Tailândia cortou o fornecimento de eletricidade, internet e gás para várias áreas de fronteira em Mianmar, numa tentativa de interromper os esquemas de fraude.

Como parte da repressão conjunta das autoridades da Tailândia, Mianmar e China, milhares de vítimas de tráfico estão agora aguardando a repatriação para seus países de origem. No entanto, uma operação tão ampla exige que os países reivindiquem seus cidadãos, antes de eles serem enviados para casa.

Resposta regional necessária à repatriação

Milhares de chineses, centenas de indianos, vietnamitas, etíopes e outros africanos estão entre as vítimas mantidas em Mianmar. Amy Miller, diretora para o Sudeste Asiático da Acts of Mercy International, um grupo de ajuda com sede na fronteira birmanesa com a Tailândia, disse à agência de notícias AP que é necessária uma resposta global para que os governos locais assumam a responsabilidade por seus cidadãos.

Segundo ela, até a segunda-feira (03/03), a grande maioria dos 7 mil aguardando repatriação ainda está em Mianmar, ou em campos controlados pelos militares ou ainda em instalações fraudulentas: “mais de 200” estariam esperando na Tailândia pela repatriação.

“Independentemente de onde estejam, é um número muito grande, e seu processamento é extremamente oneroso para todos os governos envolvidos. A capacidade de examiná-los é um desafio, o idioma é uma barreira, a tecnologia é uma barreira.”

“Acreditamos que estão registrando essas pessoas em lotes e fornecendo esses números e informações às embaixadas na Tailândia, que é realmente a intermediária”, observou Miller, acrescentando que os recursos limitados dos países e os processos pouco claros estão atrasando a repatriação.

No fim de fevereiro, 84 indonésios foram repatriados da Tailândia. Espera-se que a Índia e a China também providenciem voos para seus cidadãos traficados. As autoridades da Tailândia e de Mianmar intensificaram os esforços reagindo a apelos públicos e relatos sobre como os golpistas – muitas vezes as próprias vítimas – foram violentamente forçados a trabalhar nessas operações, muitas delas com vínculos com redes criminosas chinesas.

Papel central chinês nas fraudes e na repressão

A China também desempenhou um papel importante na repressão aos centros de golpes em Mianmar, por se tratar de um problema doméstico para Pequim. Em janeiro, um ator chinês desapareceu após viajar para a Tailândia, para o que acreditava ser um papel num filme de uma grande empresa de entretenimento.

Chegando lá, Wang Xing, de 31 anos, relata ter sido levado por homens armados que o forçaram a entrar num carro e o levaram até Mianmar. Os sequestradores rasparam sua cabeça e começaram a treiná-lo para enganar chineses, enquanto trabalhava num call center. Ele foi resgatado e retornou à Tailândia quatro dias mais tarde, após protestos nas redes sociais chinesas.

Desde outubro de 2023, a administração militar de Mianmar deportou mais de 55 mil estrangeiros envolvidos em atividades fraudulentas, dos quais mais de 53 mil chineses, de acordo com a mídia estatal birmanesa. Em 2024, a Tailândia ajudou a transferir cerca de 900 cidadãos chineses que haviam ficado presos em operações fraudulentas em Mianmar.

Mas, apesar dessas operações de resgate e deportação, Miller afirma que os grupos criminosos estão se reajustando, e os 7 mil que aguardam repatriação são apenas uma fração dos traficados ainda confinados aos complexos de golpes.

“Sabemos que muitos chefes chineses estão transferindo os trabalhadores forçados para áreas mais ao sul, construindo complexos menos acessíveis, mais escondidos. Os que foram libertados eram provavelmente os que ganhavam menos, e os que ganhavam muito ainda estão nas centrais.”

Repressão terá impacto duradouro?

Tita Sanglee, pesquisadora associada do Yusof Ishak Institute, em Singapura, considera difícil erradicar as práticas dos centros de fraudes: “A repressão do governo tailandês certamente interrompeu as operações de golpes, mas não acho que terá um impacto duradouro. Primeiro, esses golpistas são altamente resistentes. Eles provavelmente se anteciparam aos cortes de energia e têm geradores de reserva.”

Ela crê que muitos sindicatos do crime provavelmente já se mudaram para o Camboja, “portanto os cortes de eletricidade devem ter afetado principalmente os cidadãos comuns nas áreas de fronteira”.

Sanglee observou que, embora muitos golpistas sejam vítimas de tráfico, alguns trabalham voluntariamente, atraídos por ganhos lucrativos. “Nesse sentido, não há como eliminar esses negócios fraudulentos sem criar oportunidades de trabalho legítimas.”

Mark S. Cogan, professor associado de estudos sobre paz e conflitos na Universidade Kansai Gaidai, no Japão, concorda com as impressões de Sanglee: “Eu diria que os esforços não serão bastam, pois acredito que as empresas criminosas, tanto chinesas quanto de Mianmar, ainda existirão. Portanto, não, este não é o fim dos centros de golpes. É mais provável que a natureza da criminalidade mude, para se adequar às condições ideais.”