16/02/2005 - 8:00
E uma febre? Uma moda passageira? Um fenômeno de estação? Não. É um superproduto. Ele surge de vez em quando e, com poderes que estremecem mercados, muda a história de empresas, transforma indústrias inteiras. Dívidas esmagadoras? Ele resgata. Consumo estagnado? Ele derrota. Prejuízos em série? Deixa com ele. No mundo das aventuras corporativas, por exemplo, o Homem-Aranha, aquele mesmo dos quadrinhos e das telas do cinema, salvou a fabricante brasileira de brinquedos Gulliver. Licenciada para comercializar os bonecos do Aranha no Brasil, ela saiu de uma paralisia comercial que durava décadas ao lançá-lo por aqui. Da mesma forma, Ford EcoSport, Pepsi Twist, Apple iMac, genéricos da Medley arrancaram suas empresas de verdadeiros caos financeiros ou reconduziram algumas delas ao crescimento. O que eles têm de especial? São itens de consumo que viram referências de mercado por criarem novos segmentos, revolucionarem padrões de consumo ou, ainda, adequarem-se às novas necessidades do consumidor. O Ford EcoSport é o carro mais invejado do Brasil pelas montadoras rivais. A verdade é que a Ford teve a coragem de abrir um novo nicho, o de jipes compactos. Se deu bem: 38 mil unidades foram vendidas no ano passado, líder disparado entre os utilitários. Como resultado, ela foi a única montadora brasileira que teve lucro. Às vezes, nem é preciso tentar a sorte: a salvação pode estar debaixo do próprio nariz. Foi o que fez a Pepsi, com o lançamento da Twist. O famoso ?uma Coca com gelo e limão? havia se tornado pedido recorrente em qualquer restaurante do País. A concorrente da Coca-Cola ?industrializou? esse pedido, adicionando gotinhas de limão à sua cola. Em um ano, a (antes) estagnada Pepsi viu sua participação de mercado subir quase 3%. E que tal converter uma dívida de US$ 1 bilhão em lucros recordes no prazo de sete anos? Mérito do iMac e do iPod, da Apple. Esses autênticos ?salvadores da pátria?, entretanto, precedem uma estratégia igualmente vital: reproduzir esse sucesso para o resto da marca. Será que eles conseguem? Acompanhe.
O lucro líquido da Ford foi de R$ 364 milhões na América do Sul, em 2004. Como a quarta colocada do ranking brasileiro chegou lá? Ajustes internos, cortes de custos e renegociações com fornecedores? Sim, mas as rivais também fizeram isso. A diferença é que a Ford fez o EcoSport ? o carro que o brasileiro queria. E faturou com isso. ?A proeza da companhia é fabricar um compacto (ele é derivado do Fiesta) e vendê-lo como médio?, destaca Mauro Zilbovicius, professor da USP. A montadora ameniza a influência direta do EcoSport no balanço. ?A Ford cresceu como um todo?, despista o presidente Antonio Maciel Neto. Do lucro sul-americano, o Brasil responde por R$ 236,6 milhões, sendo que R$ 173,6 milhões teriam vindo, supostamente, só do EcoSport. Isso dá 73,4%. ?Esse percentual está exagerado. O jipe representa 20% das vendas. Só posso dizer que sua margem de contribuição para o lucro é bem maior do que isso?, informa Luis Salem, gerente de marketing. Quando bolou o EcoSport, a Ford recolhia os cacos da fusão mal-sucedida com a Volks, que lhe rendeu oito anos de prejuízos. Com o novo carro, o azul retornou ao balanço. ?Algumas empresas encontram na adversidade a mola propulsora do crescimento?, diz Raul Corrêa da Silva, da consultoria RCS.
Falar em dificuldade, pelo menos no setor de bebidas, é lembrar da Pepsi. Em 2002, porém, o ?super-refrigerante? Pepsi Twist elevou a participação nas colas de 9,7% em 2002 para 12,3% no ano seguinte. A arqui-rival rebateu com a Coca-Cola Light Lemon, o que reduziu a fatia da Pepsi, em 2004, para 11,7%. ?Só que o consumidor vai ficar esperando pela próxima novidade da Pepsi?, opina Eduardo Tomiya, diretor da consultoria Interbrands. ?Quem não tem tradição deve buscar inovação contínua, defini-la como imagem e transformá-la em valor.?
Às vezes, a missão do superproduto não é o confronto com um concorrente de peso, mas a geração de demanda em um segmento estagnado. Em 2001, a francesa Accor percebeu a mesmice do setor de hotelaria no Brasil, então dominado por uma equação que não fechava: quartos demais, preços altos e clientes de menos. Faturava R$ 250 milhões. ?Na época, vimos que os carros populares eram os mais vendidos?, lembra Paulo Salvador, diretor de marketing da Accor. Abrindo mão do luxo em nome do custo/benefício, veio para o Brasil a rede Fórmula 1. Ele havia salvado a Accor na Europa, onde existiu o mesmo drama da estagnação dos luxuosos. Ele tomou a clientela das pensões pulguentas dos centros das cidades e restabeleceu a rentabilidade do grupo. Com três unidades paulistanas (mais oito ficarão prontas até 2007), ela alcança 85% de ocupação.
Na indústria farmacêutica, os superprodutos são plurais: o Liptor e o Viagra (Pfizer), o Prozac (Lilly). Mas nenhum deles responde por uma expansão tão vertiginosa como os genéricos da Medley. ?Quando vi o ministro Serra falando do projeto na TV, peguei o primeiro avião para Brasília?, lembra Alexandre Negrão, dono da Medley e piloto de carros de corrida. Ano passado, a empresa de Campinas (SP), atual líder desses medicamentos, chegou à 7ª colocação nas vendas globais do setor. ?Crescemos três vezes mais do que o mercado?, comemora Jairo Yamamoto, presidente. O interessante na Medley, contudo, foi a expansão dos remédios de ?marca?, que veio a reboque dos genéricos. ?Ao obter êxito com um produto, o desafio é repartir o conceito de valor aos demais e à própria marca?, sintetiza Tomiya, da Interbrands.
Caso emblemático de um ?salvador da pátria?, entretanto, aparece na Apple. A fabricante do Macintosh, maior adversário dos PCs com sistema operacional Windows, quase quebrou nos anos 90. Devia US$ 1 bilhão em 1997. O arrojado presidente Steve Jobs resolveu colorir seus sisudos computadores e lançou o iMac. Aos poucos, as finanças foram saneadas, a companhia animou-se e repetiu a dose. Em outro golpe certeiro, criou o iPod, tocador portátil de músicas em MP3. Foi a consagração: 2 milhões de aparelhos só no ano passado. O resultado não poderia ser melhor: a Apple pagou aos acionistas lucro de US$ 0,70 por ação, superando as previsões, que calculavam dividendos de US$ 0,17. Para Tomiya, a Apple simboliza a migração da empresa que ?acerta bons produtos? para a que ?incorporou o DNA da inovação?. ?As pessoas se perguntam ?o que a Apple vai inventar para mim?? Isso é invejável sob o ponto de vista corporativo?, resume.
Ainda na área de tecnologia, a Motorola até tem esse DNA da inovação, mas não consegue repeti-lo em todos os produtos. Vive de ciclos sazonais de crescimento, baseados no sucesso individual de supercelulares. O último ponto alto, inclusive, havia sido lançado em 1996: o StarTac iniciou a moda da miniaturização dos aparelhos. Depois disso, nada mais de expressivo. Em 2004, porém, a empresa voltou a provar o sabor de um celular bem aceito, o RAZR V3, lançado em novembro. Com ele, cresceu sua participação de 13,5% para 16,6% nos EUA e arrebatou, no último trimestre do ano, lucro de US$ 654 milhões (27% a mais do que no mesmo período de 2003). Tudo ?culpa? do V3. ?A previsão de vendas é de 5 milhões de aparelhos em 2005?, antecipa a diretora de marketing Loredana Mariotto. Ela diz que a empresa reconhece a inconstância. ?Lançaremos 25 novos aparelhos neste ano?, garante.
Com a Gulliver era pior: ela havia se tornado refém de um único superbrinquedo, o Forte Apache. Nenhum outro produto emplacava. A solução apareceu com o licenciamento de bonecos de desenhos animados, em 2002. ?A TV parou de exibir faroeste e passou para super-heróis?, conta Paulo Benzatti, diretor de vendas. O sucesso instantâneo dos bonecos promoveu a expansão em um mercado antes dominado pela Estrela. A Gulliver aproveitou a onda de crescimento e buscou alternativas para se fortalecer. Assinou novos contratos com gigantes internacionais, como Hasbro (linha Shrek), Smopy (produtos pré-escolares), MGA (bonecas Bratz), além da Toy Biz, que faz os bonecos da Marvel, como Homem-Aranha, Hulk e cia.
O consultor Raul Corrêa da Silva aponta que a estratégia da Gulliver de investir em novas linhas é rara. ?O maior risco está na constante dependência por esses produtos salvadores?, afirma. Um bom exemplo de quem apanhou feio, mas aprendeu a lição, é da São Paulo Alpargatas, fabricante da Havaianas. Nascida em 1962, a sandália que não tinha cheiro e não soltava as tiras permaneceu inalterada durante três décadas. A empresa perdeu terreno nos anos 90, quando apareceu o Rider, da Grendene. Toda uma estratégia de valorização da marca Havaianas foi concebida, procurando reconquistar o consumidor de classe média e abandonando o estigma de ?atestado de pobreza?, espécie de rótulo que o produto carregava. Campanhas de TV com artistas, linha Top (monocromáticas) e início das exportações resultaram em uma virada expressiva.
?A necessidade faz a oportunidade. Mas é preciso lembrar que o crescimento baseado em um único superproduto também oferece riscos?, esclarece Tomiya, da Interbrands. Se empresas como Gulliver e Medley parecem menos dependentes dos salvadores por terem sido bem-sucedidas em outros produtos, o que irá ocorrer quando a GM lançar o rival do EcoSport? Ou que tal a Coca-Cola descobrir antes da Pepsi que a onda é misturar essência de morango, e não mais limão, nos refrigerantes? Maciel, da Ford, sabe do risco. Mas cita um desdobramento interessante do fenômeno EcoSport: ?Ele tem levado muita gente a comprar outros carros da marca, como Focus e Fiesta?. Contudo, vale a ressalva: ?O sucesso repentino com um campeão de vendas acaba mascarando a verdadeira lição de casa, que é a realização do planejamento estratégico como método contínuo de reciclagem de produtos?, diz Silva, da RCS. Ao trabalho, portanto.
Salvadores da Pátria
HOMEM-ARANHA
? Com vendas estagnadas e sem destaque no setor de brinquedos, a Gulliver resolveu licenciar bonecos de super-heróis em 2001: cresceu 20%
? No ano passado, a família de produtos do Homem-Aranha, sozinha, representou 22% do faturamento total da companhia, de R$ 35 milhões
? A empresa aprendeu com o próprio sucesso. Hoje, possui contratos de licenciamento de diversas marcas externas
HAVAIANAS
?Elas perderam terreno para o Rider, da Grendene, até sofrer minucioso trabalho de reposicionamento
? Mais de 2,6 bilhões de pares já foram feitos no Brasil.
Ela pode custar até R$ 500 no exterior
? Hoje, a divisão Havaianas responde por 38%
do faturamento de R$ 1,1 bilhão da empresa
ECOSPORT
? A Ford vinha de oito anos de prejuízos. No primeiro ano
de vendas do EcoSport, teve R$ 236,6 milhões de lucro
? O jipe representa 20% dos veículos comercializa dos pela montadora no Brasil
? De cada cinco utilitários vendidos no País em 2004,
incluindo picapes e jipes, um foi EcoSport
REDE DE HOTÉIS F1
? Hotéis luxuosos da rede só obtiam 55% de ocupação.
O Fórmula 1 alcança 85% de média
? Depois que abriu o F1, a Accor dobrou seu faturamento:
R$ 250 milhões para R$ 500 milhões
? Diárias custam entre R$ 60 e 90: busca por clientes de pensões
GENÉRICOS
? Em 2001, o laboratório tinha 1% de participação e receita de R$ 230 milhões
? Com a nova opção de negócios, saltou para 3,5% e R$ 370 milhões de faturamento
? Possui 200 medicamentos catalogados na lista de genéricos. É a líder do setor
CUIDE BEM DO SEU PRODUTO SALVADOR
Tenha a cabeça aberta para
interpretar os resultados de pesquisas de mercado. GM e Ford sabiam que o consumidor queria um carro compacto, espaçoso e de carroceria alta: a GM lançou o Meriva e a Ford, o EcoSport.
Ao perceber o sucesso de um
produto, lembre-se que o mundo atual vive sob o domínio das marcas. Isto é: o importante é multiplicar o fenômeno do sucesso para diversos produtos, como no exemplo das Havaianas.
Não cochile sob o êxito
de um único produto. Tente associá-lo rapidamente ao nome da empresa. O importante é que o público se convença de que a Apple é inovadora, não apenas o iMac ou o iPod.
Faça o planejamento
estratégico com grande seriedade. A programação contínua de novos produtos reforça o crescimento sustentado, sem os altos e baixos de sucessos e fracassos sazonais.