Não é primeira vez, e nem será a última, que o Congresso se enfia em projetos do Executivo para colocar seu próprio DNA. Também não é novidade que as mudanças envolvam vantagens para os legisladores. E não seria diferente com o Arcabouço Fiscal do ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Depois da caneta do Claudio Cajado (PP-BA), o novo texto reduz em R$ 23 bilhões os recursos para livre uso do governo federal e prevê punições mais brandas para infrações na responsabilidade fiscal. “Se a gente criminalizar o gestor que não cumpre a meta, incentivamos que ele não seja ambicioso, que ele não persiga resultados excelentes e fique com metas comedidas demais. Não queremos isso”, disse à DINHEIRO.

Para ele, diferentemente do texto enviado pelo governo incialmente (que previa punições nominais aos prefeitos, governadores e presidente), a melhor saída seria a construção de métricas e gatilhos que travem a gestão, não o gestor. “Não queremos punir o gestor, mas a gestão com gatilhos e sanções”, disse. A substituição foi bem vista por pelos parlamentares, já que muitos deles brigam por vagas de prefeitos e governadores e não querem virar ficha suja por erros na antecipação de arrecadação e gastos.

TEXTO MODIFICADO Claudio Cajado, relator do Arcabouço, disse ter negociado com Simone Tebet as mudanças no texto; ministra do Planejamento diz que ainda há pontos nebulosos (Crédito:Paulo Sergio)
Pedro Ladeira

Além da discussão sobre (como) vigiar e punir, outro assunto retratado na nova versão do Arcabouço é a disponibilidade de recursos de uso livre do governo federal. A explicação é que após aprovar recursos na ordem dos R$ 169 bilhões ao final do ano passado com a PEC da Transição, o governo Lula distorceu as métricas para os cálculos daqui para frente. “Tudo isso exige uma atenção redobrada para os próximos anos porque se soma aos recursos obtidos na pandemia e que ainda não foram equacionados”, disse Cajado. Ele se apoia em um estudo da Comissão de Assuntos Econômicos, da Câmara, que calcula uma distorção de R$ 23 bilhões ainda este ano.
Uma das poucas métricas desenhadas pelo Ministério da Fazenda no Arcabouço Fiscal que não será inalterada é que o aumento despesas do ano seguinte será equivalente a 70% do incremento das receitas acima da inflação do ano vigente (com variação entre 0,6% a 2,5% ao ano), mas agora as receitas extraordinárias (como os provenientes de concessões) ainda precisarão ser regulamentadas de modo mais claro. “Mas isso é um segundo passo, depois da aprovação”, afirmou Cajado.

No que diz respeito ao incremento das receitas, o deputado ressalta que ainda faltam explicações do governo. “Haddad precisa mostrar como se dará esse aumento. Sabemos que a Reforma Tributária é necessária, mas ela sozinha basta?” Além disso, ele cita o fim de isenções fiscais como um assunto delicado para tratar no Congresso, mas concorda ser preciso rever algumas benesses.

O PLANO MAIOR Enquanto o Congresso dá o alerta sobre as necessidades de arrecadação, o governo admite que será preciso algo em torno de R$ 100 bilhões a mais nos cofres públicos para cumprir as metas do Arcabouço. Mesmo precisando de todo este dinheiro, o discurso oficial é que não haverá elevação de impostos e a cifra virá do fim das distorções fiscais. Os economistas da Câmara, no entanto, alertam: da forma como a arrecadação está hoje a probabilidade de Haddad lograr êxito é de 35%, o que derruba também o sonho de uma estabilidade da dívida pública (hoje em 78%).

Com essa perspectiva menos otimista, a solução do Congresso é travar os gastos do governo federal. Novos concursos, reajuste salarial, criação de cargos e despesas obrigatórias ficam proibidos quando não se bater as metas ­— mas só no Executivo. O Judiciário e o Legislativo seguem ilesos. As transferências Constitucionais (para saúde, educação e emendas parlamentares) também ficam fora dos gatilhos de redução. Com essas alterações feitas, os presidentes da Câmara (Arthur Lira) e Senado (Rodrigo Pacheco) garantem que o novo marco será aprovado até o final de maio — Lula e Haddad gostando ou não do resultado final.

Um cavalo de Tróia que saiu do Congresso Nacional em direção ao Palácio do Planalto e se o ministro da Fazenda Fernando Haddad não percebeu ainda que é uma cilada, é por ser ingênuo demais para o cargo que ocupa ou por ter algum plano maior que ninguém (além dele e de Lula) consegue enxergar.

Mãozinha do Judiciário

Coube a André Mendonça, o ministro do STF “terrivelmente evangélico” e indicado por Bolsonaro, um entendimento final para que Corte desse ao governo federal um fôlego de R$ 90 bilhões. O Supremo vinha discutindo desde abril um entendimento acerca do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) e a Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL) sobre determinados incentivos fiscais concedidos por governos estaduais a empresas.

Até então, quando um governador ou prefeito ofereciam algum subsídio ou isenção por meio do ICMS, por exemplo, o governo também deixava de cobrar os impostos nacionais. O STJ já havia entendido que a isenção era compulsória para governo federal e por isso inconstitucional, já que sua aplicação causava mais dano a União do que benefício aos estados, mas o assunto foi para a Suprema Corte quando a Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) questionou a decisão anterior do colegiado e em 26 de abril Mendonça derrubou o entendimento do STJ em caráter liminar.

Com a ministra do Planejamento, Simone Tebet, e o advogado-geral da União, Jorge Messias, Fernando Haddad logo tratou de se reunir com Mendonça para que o ministro reavaliasse sua posição. Segundo Messias, esse conflito entre as duas mais altas Cortes do Judiciário era o suficiente para causar uma insegurança jurídica que todas as esferas da gestão pública, além de complicar ainda mais o sistema tributário brasileiro. “O entendimento apazigua uma questão e evita uma judicialização que seria inevitável”, disse o advogado-geral da União.

CARLOS ALVES MOURA

O entendimento da Corte determina que, a partir de agora, empresas só poderão abater da base de cálculo subvenções estaduais ligadas a investimentos, desde que comprovados os requisitos legais. Assim, pelo acordo nascido no STJ e endossado pelo STF, as subvenções ligadas a custeio (gastos do dia a dia) da atividade empresarial não poderão ser abatidas. “Tais abatimentos só são legais e incentivados pela União quando seu destino são investimentos, o que não é o caso na maioria absoluta das vezes”, disse o ministro Haddad depois de um encontro com Mendonça no dia 4 de maio. A decisão, que não dependeu do Congresso, foi um golaço da equipe econômica do governo Lula e a primeira vitória relevante no campo da arrecadação.