03/02/2025 - 15:07
País é o maior provedor de ajuda internacional. Decisão de Trump de congelar repasses e fechar agência ameaça continuidade de projetos na África e Ásia – e põe em risco também iniciativas no Brasil.”Foi uma surpresa para a gente”, afirma Roshan Pokhrel, secretário do Ministério da Saúde do Nepal. “Nós realmente não esperávamos que todos os programas parassem.”
Pokhrel diz ter sido avisado no fim de janeiro, por telefone, sobre o fim de todos os programas financiados pelos Estados Unidos no Nepal. O corte, segundo ele, afetará principalmente iniciativas de nutrição e saúde materna. “Com certeza é um sinal preocupante para nós.”
O novo presidente dos EUA, Donald Trump, baixou em seu primeiro dia no cargo um decreto suspendendo os repasses a projetos de ajuda humanitária no exterior. O congelamento vale por 90 dias, enquanto seu governo avalia se os projetos estão “alinhados” a interesses americanos e tornam o país “mais seguro, mais forte e mais próspero”.
No centro da ofensiva está a USAID, agência do governo americano responsável por esses projetos. Centenas de funcionários foram demitidos ou postos em férias compulsórias, e há sinais de uma possível extinção do órgão criado em 1961.
Nesta segunda-feira (03/02), o bilionário Elon Musk, chefe do Departamento de Eficiência Governamental do governo Trump, acusou a USAID de ser uma “organização criminosa” e anunciou seu fechamento: “Não é uma maçã bichada, o que temos é uma bola de bichos. Você tem que, basicamente, jogar fora a coisa inteira. Não dá para consertar.”
“América em primeiro lugar”
Conforme a agenda trumpista “America First” (EUA em primeiro lugar), apenas projetos que tornem o país comprovadamente mais seguro e próspero podem receber financiamento.
A secretária de imprensa da Casa Branca, Karoline Leavitt, acusou o governo anterior, sob Joe Biden, de gastar dinheiro “como marinheiros bêbados”, e prometeu que Trump vai gerir melhor as verbas públicas. Segundo ela, o congelamento atende a esse objetivo.
Parceiros estatais e entidades da sociedade civil organizada estão horrorizados e confusos, já que ainda não está claro quais projetos serão afetados no longo prazo. A legalidade do congelamento de verbas pelo governo Trump já foi questionada em tribunais americanos, mas até agora essas queixas não prosperaram.
No fim de janeiro, o secretário de Estado americano, Marco Rubio, recuou parcialmente, ao isentar do congelamento medidas de ajuda humanitária emergencial “que salvam vidas”, como os programas de tratamento de HIV.
Projeto vitamina A para crianças entre os afetados
O Programa Nacional Nepalês de Vitamina A (NVAP) é uma das iniciativas afetadas pelo congelamento de fundos. Ele prevê a administração de vitamina A a mais de 3 milhões de crianças que vivem em áreas de difícil acesso – o país do Sudeste Asiático é atravessado pela cordilheira dos Himalaias.
Estima-se que o programa tenha salvado a vida de 45 mil crianças abaixo dos cinco anos desde a década de 1990. A deficiência de vitamina A pode contribuir para a cegueira, mas também aumenta a suscetibilidade a diarreia e a doenças como o sarampo e a malária.
Outros programas afetados incluem a ajuda a refugiados no norte da Síria, o custeio de próteses para feridos da guerra na Ucrânia e projetos para remoção de minas no Sudão.
Cortes também afetam o Brasil
Algumas medidas ficaram isentas do congelamento, como é o caso da ajuda militar a Israel e ao Egito. Além disso, o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, confirmou que seu país segue recebendo verbas americanas.A entrega emergencial de alimentos também não foi afetada.
O cientista político Stephan Klingebiel, do Instituto Alemão para o Desenvolvimento e a Sustentabilidade (Idos), classificou como “massivos” os efeitos do congelamento de ajuda, lembrando que “os Estados Unidos são o maior doador de ajuda externa”.
Só em 2023, foram concedidos cerca de 68 bilhões de dólares (R$ 396,9 bilhões). “Se isso tudo de repente é suspenso, então seres humanos estão sendo afetados diretamente.” Em 2024, a USAID foi responsável por 42% de toda a ajuda humanitária rastreada pelas Nações Unidas.
Também o Brasil foi afetado pelos cortes. Iniciativas de assistência a refugiados venezuelanos, projetos de fomento à resiliência climática no Nordeste e de assistência econômica a comunidades indígenas do Norte tiveram seus repasses congelados, segundo a imprensa brasileira.
O congelamento de fundos também deve atingir entidades brasileiras que trabalham na preservação do meio ambiente e na defesa de direitos indígenas, desfalcar grupos pró-diversidade, feministas e antirracistas, e prejudicar o combate à desinformação.
“Sentença de morte”
“Estamos num limbo constante”, lamenta Nozizwe Ntesang, ativista em Botsuana que trabalha na Legabibo, uma entidade de defesa dos direitos LGBTQ+. “Boa parte do nosso financiamento vem dos EUA, através do Pepfar e de outras agências.”
O programa americano de combate à aids Pepfar foi lançado pelo presidente George W. Bush em 2003 e ajudou desde então a salvar cerca de 25 milhões de vidas em todo o mundo mediante a entrega de medicamentos antirretrovirais.
Segundo Ntesang, a Legabibo geralmente distribuía esses medicamentos a 9 mil pacientes por mês. “Hoje foi a primeira vez em anos que não havia ninguém nas clínicas. Há um risco real de saúde quando eles não conseguem acessar o tratamento. Basicamente, é uma sentença de morte.”
Segundo Ntesang, a Legabibo procurou o Ministério da Saúde de Botsuana para solicitar a disponibilização de fundos emergenciais.
Oportunidade para a China?
É improvável que governos dos países mais pobres sejam capazes de manter por conta própria os projetos que até então dependiam do apoio americano. E assumir o lugar dos EUA seria difícil mesmo para países ricos como a Alemanha, segunda maior financiadora de projetos do tipo.
“Mesmo se tivesse o dinheiro, a Alemanha não conseguiria dar conta da logística e da infraestrutura num espaço prazo tão curto para compensar”, avalia Klingebiel.
O cientista político prevê que essa lacuna pode acabar sendo preenchida no longo prazo pela China. “Países como a China, Rússia e outros adorariam ocupar espaços onde o Ocidente não é tão forte”, afirma. “Temos muitas vezes visto isso no continente africano, mas também em outros lugares. Trump está criando novas oportunidades para a China.”
O resultado, segundo Klingebiel, seria a perda de influência americana no mundo, já que o fornecimento de ajuda humanitária também era uma forma de influenciar as políticas de outros países para que elas sirvam a seus próprios interesses.
Outros veem nos eventos nos EUA uma chance. “Sejamos autossuficientes”, exortou o ex-presidente queniano Uhuru Kenyatta. “Não é seu governo, não é seu país. Ele [Trump] não tem motivos para te dar nada. Você não paga impostos nos EUA. Esse é um chamado à realidade para que você diga: ‘Ok, o que vamos fazer para ajudarmos a nós mesmos?'”