Registro de estupro de homens cresceu 29% desde 2020 – entre meninos, casos se concentram de 5 a 9 anos. Ideias sobre masculinidade e proximidade com abusador favorecem subnotificação.As lembranças da infância de José* não são marcadas por brincadeiras e dias de diversão, mas sim pelo abuso sexual que sofreu dos 8 aos 12 anos. Morador de uma cidade no interior de São Paulo com pouco mais de 20 mil habitantes, ele conta que, durante cinco anos, foi abusado sexualmente por um primo oito anos mais velho.

“Morávamos na mesma rua e toda tarde ele ia para minha casa enquanto minha mãe trabalhava. Era lá que os abusos aconteciam. Ele falava que sabia que no fundo eu estava gostando, e foi assim por anos”, diz.

O medo, segundo José, o fez não denunciar seu primo e nem mesmo contar a situação à sua mãe, que morreu no ano passado sem saber de nada. Hoje aos 55 anos, ele consegue falar mais abertamente sobre tudo o que passou, mas os traumas ainda permanecem.

“Por muito tempo, me achei culpado pelo que passei e sentia vergonha. Me casei, tive dois filhos, mas sempre tive um bloqueio em me relacionar e ter relações sexuais. Nunca consegui falar sobre isso com minha esposa e após cinco anos de relacionamento nos separamos. Depois disso, nunca mais tive um relacionamento”, diz.

José atribui essa dificuldade aos traumas vividos na infância. Apenas no ano passado, ele teve coragem de buscar ajuda e começou a fazer terapia.

“Demorei a entender que tinha depressão e que minha dificuldade de ter um relacionamento poderia ter ligação com tudo o que passei na infância. Hoje consigo ter uma relação melhor comigo mesmo, e aos poucos estou me abrindo, mas ainda não penso em tentar uma nova relação”, acrescenta.

Registro de estupro de homens subiu 29% em quatro anos

Casos como o de José são um exemplo dos desafios enfrentados por homens que são vítimas de crimes sexuais.

Dados do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisionais, de Rastreabilidade de Armas e Munições, de Material Genético, de Digitais e de Drogas (Sinesp) mostram que 45.850 homens foram vítimas do crime de estupro no Brasil de 2020 a 2024.

O ano passado foi o com mais registros dessa violência, 10.590 casos, alta de 29% em relação a 2020, quando foram 8.183 registros. Neste ano, até junho já são 5.455 vítimas.

Os dados do Sinesp abrangem todos os registros de estupro, incluindo aqueles contra menores de 14 anos, os chamados de estupro de vulnerável.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública traz dados mais detalhados por gênero e idade. No universo de registros de estupro de vulnerável, as meninas são a grande maioria das vítimas, com 86,2% dos casos, contra 13,8% dos meninos.

Mas há uma diferença entre os gêneros quanto à faixa etária na qual mais ocorrem os estupros de vulnerável. Para as meninas, a maior concentração dos casos (33,9%) ocorre de 10 a 13 anos, enquanto para os meninos há mais chance de o estupro ocorrer mais cedo, na faixa de 5 a 9 anos (32,8% dos casos).

Tabu favorece subnotificação

Pesquisadores estimam que o número real de casos seja ainda maior, já que ainda existe um tabu sobre a violência sexual contra homens, fazendo com que muitos, assim como José, não denunciem e os casos fiquem sem serem notificados.

Para o psicólogo Denis Gonçalves Ferreira, além do medo, outros elementos estão por trás das subnotificações como o medo de serem vistos como homossexuais e até mesmo a dificuldade de reconhecer que o que viveram foi, de fato, um abuso sexual.

“Desde pequenos, os homens são ensinados que eles são fortes e devem ser capazes de se defenderem sozinhos. Assim, falar que foi vítima é como se demonstrasse uma vulnerabilidade, o que culturalmente no Brasil ainda é muito difícil. Além disso, grande parte dos abusos sexuais partem de outros homens e dessa maneira a vítima acaba tendo uma relação homossexual, o que é motivo de vergonha para grande parte dessas vítimas”, detalha.

Outro ponto que faz com que muitas vítimas fiquem em silêncio é a proximidade com o abusador. Os dados brasileiros mostram que a maior parte dos abusos é cometida por um familiar ou alguém conhecido da família.

Denis é fundador da ONG Memórias Masculinas, que oferece plantões psicológicos gratuitos a homens vítimas de violência e qualquer pessoa pode pedir ajuda através de uma página do Instagram e um site, que direciona o contato a um profissional capacitado. Segundo o psicólogo, são cerca de 20 novos contatos por mês.

O psicólogo relata que muitas vítimas relatam que os abusos sexuais também são cometidos por mulheres, como babás, familiares e amigas da família. Além disso, ele destaca que relações sexuais pressionadas, como a exercida por esposas ou parceiras, podem produzir sensações parecidas às de uma violência sexual.

“A situação de abuso sexual masculino às vezes é muito difícil de ser identificada, porque o homem recebe o rótulo de que não nega sexo. Mas quando não há consentimento ou a idade é desajustada, como no caso de uma mulher mais velha com um adolescente, em que ela consegue convencê-lo de algo, também é um abuso. É necessário ter mais consciência sobre o tema”, afirma.

O psicólogo fez uma revisão de estudos sobre violência sexual contra meninos ocorridos no Brasil e aponta que homens vítimas de violência sexual são mais propensos, por exemplo, ao uso de drogas, à prática de sexo anal sem proteção, a disfunções sexuais, ao isolamento social e a ideias suicidas.

“Para mudar esse cenário é necessário que haja de fato uma educação sexual da população. E isso inclui falar abertamente sobre sexualidade, sobre nosso corpo e sobre violência. Isso deve ser falado tanto em casa como nas escolas, mas os professores não estão habilitados para isso e também precisariam receber preparo”, diz.

Como identificar os abusos?

Alguns sinais podem servir de alerta para identificar a violência sexual nos meninos e nos homens, sendo as principais delas a mudança brusca no humor e no comportamento, medos excessivos e vergonha de trocar a roupa na frente dos pais, por exemplo. As vítimas também podem parar de fazer atividades que gostavam, principalmente as que envolvem contato físico, como esportes, e buscar isolamento social.

“Em alguns casos, o sofrimento se manifesta por meio de comportamentos agressivos, desobediência, hiperatividade, automutilação ou uso precoce de substâncias. É importante lembrar que o silêncio do menino não significa ausência de dor, por isso é importante observar o comportamento com sensibilidade”, explica Lígia Vezzaro psicóloga infantil com especialização em violência doméstica contra crianças e adolescentes e gerente técnica institucional da ONG Ficar de Bem, que oferece apoio a vítimas de violência física, psicológica e sexual.

Crianças que são vítimas de abusos podem simular cenas de sexo entre bonecos, fazer brincadeiras de cunho sexual com colegas e passar a usar palavras que remetem ao vocabulário sexual.

“Também é importante observar manifestações de sexualidade incompatíveis com a idade e relatos indiretos, que muitas vezes vêm em forma de brincadeiras, desenhos ou histórias contadas por ‘um amiguinho’. A escuta atenta e sem julgamento é fundamental para que a criança se sinta segura para falar”, acrescenta Vezzaro.

Como denunciar abuso infantil

Abuso sexual infantil é crime e deve ser denunciado. A denúncia pode ser anônima e no Brasil há alguns canais oficiais para esse tipo de denúncia.

Disque 100: serviço telefônico gratuito para denúncias de violações de direitos humanos, incluindo denúncias de violações contra crianças e adolescentes. Ele funciona em todo o território brasileiro, 24 horas por dia, todos os dias da semana, incluindo feriados.
Conselho Tutelar: órgão responsável por proteger os direitos das crianças e adolescentes, e pode ser acionado em casos de suspeita ou confirmação de agressões, abusos sexuais ou violações dos direitos desse público. Ele é de responsabilidade municipal e basta procurar o mais próximo para denunciar ou receber orientação. As denúncias podem ser por telefone ou presencialmente.
ONG Memórias Masculinas: organização não governamental especializada em atender homens vítimas de abuso sexual em qualquer fase da vida. O serviço pode ser acessado pelo site.

* A reportagem usou um nome fictício a pedido do entrevistado.