19/04/2021 - 9:52
Historiadora da USP critica projeto de Paulo Guedes para impor tributo sobre livros e afirma que taxação vai na contramão de anos de campanhas de incentivo à leitura.A proposta de reforma tributária do ministro da Economia, Paulo Guedes, tem causado intensos debates em um segmento até então isento de impostos: o livreiro. Se entrar em vigor da maneira como o governo federal pretende, a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) significará uma taxação de 12% sobre livros no país.
Com base em argumentos da Receita Federal, a pasta justificou o fim da isenção aos livros alegando que “famílias com renda de até dois salários mínimos não consomem livros não didáticos” e “a maior parte desses livros é consumido pelas famílias com renda superior a dez salários mínimos”. Em outras palavras: para o governo federal, livro no Brasil é coisa de rico.
A história de isenções tributárias ao setor no Brasil remonta à década de 1940, quando o escritor e então deputado federal Jorge Amado (1912-2001) conseguiu aprovar uma emenda que garantia imunidade tributária para a impressão de livros, revistas e jornais. Em 1988, ela passou a ser garantida na Constituição e, em 2004, uma lei federal livrou o setor de alíquotas referentes ao Programa de Integração Social (PIS) e à Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins).
Para a historiadora Marisa Midori Deaecto, professora livre-docente em História do Livro na Escola de Comunicações de Artes da Universidade de São Paulo, o atual discurso do governo e a taxação contribuem para piorar o acesso ao livro no Brasil. “Dos pontos de vista simbólico, moral e financeiro, o impacto de 12% sobre o preço de capa é muito maior do que os ganhos”, afirmou à DW Brasil.
Em entrevista, Deaecto fala sobre as controvérsias desta proposta do governo e o acesso à leitura no país.
DW Brasil: Entre contribuir para a melhora da arrecadação e formar um país de leitores, como deve ficar o governo?
Marisa Midori Deaecto: A economia do livro no Brasil é pequena se comparada a de outros países, mas para nós ela é importante. E, desde 2001, sabemos que houve um crescimento bastante importante. Mas se pretende-se aumentar o preço de capa em 12%, porque a contribuição no final atinge o consumidor, há uma contradição. Cria-se uma resposta tributária que trai um princípio constitucional e incide sobre o preço de capa do livro, atingindo o consumidor e se diz que isso vai ter impacto forte na arrecadação… Isso é uma grande falácia, é nesse ponto que estamos insistindo.
Cabe ao Estado garantir direitos básicos aos cidadãos e estamos falando em escola e também em leitura. A contribuição teria um efeito imediato, mas é um efeito muito pequeno em relação ao produto que atinge. Dos pontos de vista simbólico, moral e financeiro, o impacto de 12% sobre o preço de capa é muito maior do que os ganhos. Não colabora para as políticas públicas em prol da educação e cultura, muito pelo contrário. E também não enriquece o tesouro.
O argumento da Receita Federal acabou traduzido como um entendimento de que, no Brasil, “só rico que lê”. De certa forma, isso não evidencia as próprias discrepâncias históricas de nosso país, que se reflete no consumo de entretenimento e cultura?
Uma mercadoria 12% mais cara pesa muito mais no bolso do pobre do que no bolso do rico, por isso digo que há um fator moral. Hoje nosso mercado está muito diversificado, de modo que atinge todas as classes. Isso é fruto de pelo menos 25 anos de políticas públicas, organizações ligadas à área editorial, campanhas publicitárias até por parte dos veículos de massa. A taxação do livro é imoral, anticonstitucional e vai na contramão de toda a campanha em favor do livro e da leitura criada nos últimos 25 anos.
O livro tem uma aura simbólica positiva. Nosso processo de formação de leitores é mais lento e atrasado [se comparado com países europeus, por exemplo] e deve correr atrás desse atraso que, no fundo, é multissecular. O que foi feito entre as décadas de 1960 e 1980, pela ditadura? Incentivou-se a cultura massificada ligada à televisão e ao rádio, em detrimento da cultura literária, exatamente o mesmo discurso de Bolsonaro nos dias de hoje. Mas não podemos ignorar que [depois disso] houve uma série de iniciativas que conduziram as crianças às escolas, como [os programas] Bolsa Família, Sisu, Prouni… Aquela história de pai lavrador, filho doutor se consolidou nos últimos 25 anos. O mercado [literário brasileiro] é pequeno se comparado a potências editoriais, mas é muito importante dentro do contexto do Brasil.
O que pode ser feito para resolver essa questão, disseminando mais o prazer da leitura entre todas as classes sociais?
Estamos falando sobre tributação, mas estamos falando também da forma como o Estado atua em parceria com a sociedade civil para resolver esses problemas, não é? Não adianta só a luta de um. O que percebemos é que o governo atual e, particularmente, o ministro Paulo Guedes criam na verdade obstáculos para o desenvolvimento da economia editorial. Não se trata de discutir quem é o público do livro, o público leitor e tampouco se a reforma tributária pode contribuir também para os setores da cultura e da educação. Para ele, é muito mais fácil fazer tábula rasa desses setores. Me parece muito mais uma questão ideológica, motivada por uma ranço passadista que diz que leitura é coisa de comunista.
E o outro lado da história? Incluir os livros na tributação poderia trazer um fôlego para orçamento nacional?
Fôlego para o orçamento nacional? Aumentar o preço de capa em 12% não dá fôlego nenhum. Quando se diz que livros são mercadoria de luxo e só os ricos compram, é falácia. A pesquisa Retratos da Leitura mostra participação maciça de classes C e D na economia do livro nacional. É evidente que uma mercadoria que se torna 12% mais cara terá um peso muito maior, muito mais sentido, muito mais chorado no bolso do pobre. E as vendas vão cair, porque o livro já virá maculado com a taxa, que afeta o imaginário do consumidor. Do ponto de vista simbólico também é um desastre: deixa muito claro que o Estado se exime de qualquer responsabilidade em relação ao futuro do país, no que toca ao desenvolvimento da educação, da cultura e da ciência.
Dizer que o livro é um produto das elites e que é possível taxá-lo sem um impacto maior dos consumidores das classes C e D é algo tão fundamentalista e falacioso quanto dizer que a Terra é plana, duvidar da ação efetiva das vacinas, diminuir investimentos em universidades, assim por diante. A cadeia de produção do conhecimento começa no autor — e parece evidente que a formação do autor nesse processo é importante — e termina no leitor — com evidente importância da formação do leitor nesse processo. Então, independentemente do gênero editorial e do tipo de livro que se vende no mercado, trata-se de uma mercadoria ambivalente, que tem poder simbólico, valor de mercado e dialoga diretamente com o grau de cultura e educação do país.
O que fazer diante desse cenário?
Estamos fazendo todos: perdendo o sono e a voz, unidos em uníssono, cada um atuando com suas armas contra essa taxação. Há uma mobilização de várias vozes da sociedade civil e também da classe política, pelo menos aquela fração comprometida não só com o futuro dos leitores, mas ciente de que é impossível pensar num país que não invista em educação e ensino superior. E o livro é um fermento muito importante nesse processo.