07/02/2022 - 8:59
Uma guerra perdida sem mesmo ter começado. Assim pode ser definida a chance que a justiça brasileira terá ao tentar impedir que o Telegram seja usado de forma extremada nas eleições presidenciais deste ano. O medo, procedente, do atual ministro que comanda o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luís Roberto Barroso, é que uma enxurrada de fake news seja escoada pelo aplicativo de mensagens. O que vai de fato ocorrer. E mesmo assim nada poderá ser feito.
As ameaças de banir o app no Brasil ficarão restritas a isso mesmo: em ameaças. Por três motivos. O primeiro motivo é acionar judicialmente uma empresa que nem sequer tem endereço ou representante oficial no Brasil. Isso leva ao segundo motivo, já que então teriam de ser acionados dezenas de provedores de serviço internet (ISP) e lojas de aplicativos (Apple e Google). Ainda assim, os principais agentes interessados em manter seus grupos com milhares de usuários podem usar VPNs (redes privadas) para espalhar conteúdos mentirosos. O terceiro e último motivo é que o Telegram é calejado. Trata-se de um time que enfrenta – e vence – Estados muitos mais estruturados, inteligentes e experientes que o Brasil, como Alemanha e Rússia.
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Fica mais fácil entender por que a carta oficial enviada pelo ministro Barroso, do TSE, para a sede do Telegram em Dubai (Emirados Árabes Unidos) foi ignorada e devolvida. Ninguém a recebeu. E o app vai continuar a ignorar qualquer apelo brasileiro. Nem a poderosa Alemanha, que enfrenta o mesmo problema, tem alcançado muito sucesso. No país europeu, grupos extremistas e antiLockdown têm usado o app para encontros, protestos e até ameaças diante da residencial oficial de políticos. Na sexta-feira (4), um porta-voz do Ministério do Interior da Alemanha afirmou que houve “uma discussão construtiva com representantes da alta administração do Telegram”. Ganha uma conta no Telegram que souber definir o que é uma “discussão construtiva”. Não houve uma foto de tal encontro, nem o nome de ninguém, nem sequer quando exatamente aconteceu.
Muito desse comportamento do Telegram tem a ver com o que pensam os donos e fundadores do aplicativo de mensagens, os irmãos russos Nikolai (41 anos) e Pavel Durov (37 anos). Eles tiveram uma formação parruda. O pai é um acadêmico e pesquisador que foi por décadas vinculado à Universidade Estadual de São Petersburgo. Nikolai é matemático premiado e exímio programador. Pavel, formado em filologia. Ao lançarem o Telegram, em agosto de 2013, eles trabalhavam numa solução que fosse a definição suprema de um território totalmente livre de pressão de qualquer Estado.
Para o bem e para o mal. Numa reportagem do fim de 2015, ao TechCrunch, Pavel foi confrontado sobre o fato de integrantes do grupo Estado Islâmico usarem o app para conceber atos criminosos. “Penso que a privacidade, e nosso direito à privacidade, sejam mais importantes que nossos medos de que coisas ruins, como o terrorismo, aconteçam”, afirmou. Quatro anos depois, quando a Rússia ameaçou banir o Telegram, ele escreveu: “Devemos banir as palavras. Há informações de que terroristas se comunicam com elas.”
Pavel se tornou bilionário (sua fortuna é estimada em mais de US$ 17 bilhões) ao criar em 2006 o VKontakt, posteriormente conhecido como VK, a versão russa do Facebook. Nikolai era o programador-chefe. A plataforma virou um fenômeno. Segundo Pavel, a companhia passou a ter participações acionárias pesadas concentradas em pessoas ligadas a Vladimir Putin. Para ele, o grupo do líder russo queria usar o comando da empresa para coibir manifestações antiKremlin na rede social, ou mesmo espionar pessoas comuns. Pavel então se desfez de suas ações e criou o Telegram. Ele e Nikolai queriam, acima de tudo, um espaço livre de qualquer ingerência estatal. E qualquer ingerência estatal significa exatamente isso. De qualquer país, e por qualquer motivo. Os irmãos junto de duas dezenas de funcionários deixaram a Rússia, migraram primeiramente para a Alemanha e agora estão em Dubai, onde fica a sede do Telegram. E de onde a carta de Barroso foi ignorada e devolvida.