18/12/2022 - 7:22
Enquanto Lionel Messi e seus companheiros de seleção agradeciam o apoio da torcida após a vitória sobre a Holanda nos pênaltis nas quartas de final, eles foram acompanhados por uma melodia que está se tornando cada vez mais a trilha sonora da Copa do Mundo de 2022.
“En Argentina nací; tierra de Diego y Lionel!” cantavam fileiras de torcedores vestidos de azul e branco que representavam a esmagadora maioria dos 88 mil torcedores no estádio, muitos girando suas camisas no ar sobre suas cabeças, de forma cadenciada.
A Argentina é a terra de Diego Maradona e Lionel Messi, e as imagens dos dois semideuses do futebol argentino adornando as bandeiras, faixas e camisetas dos torcedores deixam isso bem claro.
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Mas a Argentina também é o país dos barras bravas – torcedores conhecidos por seu perfil violento, mas que são responsáveis pela atmosfera de tirar o fôlego e pela cultura única que caracterizaram o futebol argentino no último século, tanto quanto Maradona e Messi.
E agora os barras bravas – que podem ser traduzidos, a grosso modo, como “gangues corajosas” – também parecem estar deixando sua marca um tanto mais barulhenta no Catar – e num torneio marcado pela presença de torcedores mais ricos.
Há barras bravas no Catar?
Com a maioria dos ingressos na fase de grupos variando de 69 a 220 dólares (cerca de 370 a 1.180 reais), aumentando para 205 a 425 dólares (cerca de 1.100 a 2.270 reais) nas quartas de final e custando a partir de obscenos 605 dólares (cerca de 3.235 reais) para a final, a Copa do Mundo geralmente é acessível apenas para uma classe média alta.
Mas isso pareceu mudar nas quartas de final entre Argentina e Holanda, partida na qual milhares de torcedores argentinos puderam ser vistos em seus assentos atrás de cada gol e, até mesmo, nas próprias arquibancadas, encorajando de forma fanática seus compatriotas em campo.
“Não consigo explicar isso para você porque você não vai entender”, cantavam os torcedores. “Quantos anos chorei pelas finais que perdemos”, relembravam as dolorosas derrotas perante a Alemanha na final da Copa do Mundo de 2014, e contra o Chile na final da Copa América em 2015 e 2016.
Para o jornal argentino La Nación, foi o ápice de um desenvolvimento que o periódico vem observando desde a estreia da Argentina contra a Arábia Saudita no Mundial do Catar, onde torcedores que apoiavam a Argentina eram em sua maioria trabalhadores estrangeiros residentes no Catar, na maioria vindos da Índia.
“[Mas] desde então, houve uma mudança no comportamento dos torcedores argentinos, [cujos] tambores, incentivos incessantes e bandeiras [são] familiares ao nosso futebol nacional”, escreveu o jornal na semana passada e questionando: “Os barras bravas estão no Catar?”
Sete mil nomes entregues às autoridades do Catar
Como escreve o especialista em cultura do futebol James Montague em seu livro de 2020 intitulado 1312: Among the ultras – A journey with the world’s most extreme fans (“1312: Entre os ultras – Uma jornada com os torcedores mais extremos do mundo”, em tradução livre), os barras bravas “existiam vagamente como grupos arruaceiros e semiorganizados de torcedores desde a década de 1920, [mas] tornaram-se muito mais estruturados e hierárquicos no final dos anos 1960 e 1970, quando os clubes reconheceram que o apoio apaixonado poderia ser aproveitado para obter uma vantagem em campo.”
Em entrevista à DW, Montague acrescentou que “os governos argentinos são conhecidos por apoiar financeiramente os principais líderes dos barras bravas, seja explicitamente ou de forma mais clandestina, para levá-los às Copas do Mundo e ajudar a criar a atmosfera”.
Mas este não é o caso nesse ano. Pelo contrário, segundo o La Nación, o Ministério de Segurança da Argentina repassou às autoridades do Catar uma lista com cerca de 7 mil membros dos barras bravas que não deveriam receber o cartão Hayya – um documento de identificação obrigatório para torcedores na Copa.
Com muitos barras bravas que frequentemente são sinônimos de violência no futebol e crime organizado, o ministro de Segurança argentino, Aníbal Fernández, teria identificado a ideia de uma “Copa do Mundo livre de barras bravas” como um elemento-chave de sua campanha eleitoral.
No entanto, as autoridades argentinas não puderam impedir a viagem de torcedores sem antecedentes criminais. O jornal La Nación relata que elementos do comportamento dos barras bravas vistos em vários clubes argentinos – incluindo Boca Juniors, Vélez Sarsfield e Racing Club – estão presentes no Catar.
“Eles viajaram separadamente e se reúnem em dias de jogos. A maioria deles está hospedada em Barwa, um bairro da periferia de Doha, onde argentinos com baixo poder aquisitivo estão passando a Copa do Mundo”, escreveu o periódico.
“Alguns vendem seus carros, e outros, a geladeira”
Para Montague, que acabou de passar duas semanas no Catar, isso não é surpresa. “Quando uma seleção sul-americana vai longe numa Copa do Mundo, os torcedores fazem enormes sacrifícios e viajam em grande número para apoiá-la”, disse à DW.
“É claro que quem pode ir são os que têm mais dinheiro, mas isso não significa que os torcedores mais pobres ou da classe trabalhadora não encontrem maneiras de viajar”, contou Montague. “As pessoas literalmente vendem tudo. Alguns vendem seus carros; e outros, a geladeira.”
“Existe uma mentalidade entre certos torcedores na América do Sul de que, se sua equipe está avançando num torneio, basta chegar lá e resolver o resto depois. É um tipo singular de apoio”, acrescentou.
E este é um apoio ferozmente independente, ativo, apaixonado e incondicional – ou seja, uma expressão de uma subcultura viva no futebol.
Apesar de todos os seus lados mais sombrios, os barras bravas também representam o tipo de apoio orgânico ao futebol que, ao que parece, a Fifa e o Catar não querem na Copa do Mundo, onde se espera que os torcedores – ou clientes, aos olhos deles – compareçam obedientemente às zonas de fãs e se entretenham de forma passiva com shows de luzes pré-jogo, música pop e contagem regressiva para o pontapé inicial.
Segundo Ignacio Candia, diretor nacional de segurança de eventos esportivos da Polícia Federal Argentina, que esteve em Doha no torneio e que foi citado pelo La Nación, as autoridades do Catar ficaram mais irritadas com torcedores argentinos tirando suas camisas durante as partidas e se reunindo atrás dos gols – e muitas vezes em assentos que não são deles – com seus tambores e bandeiras.
Sonho com Messi e Maradona
É um choque de mundos, mas a torcida dos barras bravas estará novamente em peso no Estádio Nacional Lusail, quando a Argentina enfrentar a França na final da Copa, neste domingo.
Eles formarão uma onda azul e branca e produzirão ritmos e ímpetos frenéticos na crença de que, após décadas de decepção, esta pode ser finalmente a vez da Argentina.
“Rapazes, agora estamos sonhando de novo”, cantarão os torcedores, balançando seus braços em coro. “Quero ganhar pela terceira vez, quero ser campeão mundial. Diego, podemos vê-lo lá no céu, torcendo por Lionel.”