Na medida em que a tecnologia avança, as nossas relações com as pessoas acabam sendo cada vez mais intermediadas por dispositivos eletrônicos. Isso, no entanto, pode ser prejudicial para os mais jovens, sobretudo quando estão em um período mais formativo do caráter e da personalidade.

De acordo com Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE), realizada pelo Instituto Nacional de Geografia e Estatística (IBGE), dados de 2019 apontam que 3,2% dos adolescentes não tinham sequer um amigo próximo.

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A pesquisa ressalta que o isolamento cresce quando se trata de alunos de escolas particulares. Eles chegaram a apresentar um indicador de ausência de amigos quase duas vezes maior que aqueles que estudam em escolas públicas.

Felipe Augusto Scavasin, mestre em Psicologia Clínica pela USP e especialista em saúde mental pela Unifesp, afirma que ocorre um atraso no desenvolvimento de crianças, sobretudo entre aquelas com idades de seis meses e três anos, quando há um excesso de exposição a dispositivos eletrônicos, desenvolvendo atraso na comunicação e dificultando a socialização. Com o tempo, muitas acabam só criando laços com o uso das telas como intermediários, impedindo uma relação que supere conflitos e desenvolva vínculos mais profundos.

“O trabalho que a gente acaba fazendo no campo da saúde mental para o desenvolvimento da criança é buscando que ela tenha outras formas de expressão fora das telas”, diz ele. “Em um modo de viver que não prioriza a experiência comunitária, isto é, onde cada vez mais as relações significativas não se dão em espaços compartilhados, percebemos uma maior vulnerabilidade no campo da saúde mental pela criança ter poucas relações significativas com trocas afetivas em seu cotidiano.”

Segundo ele, muitas crianças sofrem com perdas significativas como a morte de um adulto de referência, mudanças de escola, rompimentos de amizades, dentre outras causas, e a falta de uma vivência comunitária pode tornar isso mais difícil e levar a um maior isolamento.

“A autonomia é a capacidade de depender de múltiplas relações. Quanto mais construo uma rede de amizade e comunitária, menos dependo de uma única relação que se algo dá errado, despenco”, afirma ele, ressaltando a importância de as crianças terem uma maior integração com a comunidade ao seu redor.

Outro ponto importante que Scavasin levanta é que, com o uso das redes sociais, o compartilhamento de sentimentos de tristeza e de problemas pessoais podem ocorrer em um âmbito mais de espetáculo e menos de acolhimento e compreensão, na medida em que a maior parte do conteúdo compartilhado acaba focando em conquistas e sucessos pessoais. Para ele, isso leva a relações mais superficiais com as pessoas, já que não há um contato mais próximo.

Ele também aponta que, muitas vezes, com a falta de referências das crianças de outras pessoas de sua faixa etária, muitas vezes elas acabam mimetizando o comportamento dos adultos, não experimentando, portanto, aspectos importantes do convívio social, como a espontaneidade e a brincadeira.

Para Laís Vignati Ferreira, mestre em ciências pela Faculdade de Medicina da USP e gerente de Caps Infantojuvenil em São Paulo, a relação com pessoas da mesma idade em um contexto presencial é importante para a criança não ficar totalmente blindada pela intermediação de telas e dispositivos eletrônicos, que podem tornar a relação mais unilateral.

“As telas realmente acabam tornando a relação mais unilateral, mas também não é questão de só demonizar as telas em um contexto onde os pais às vezes não têm outros recursos”, pondera. “Mas se as crianças não têm acesso a outras crianças, ela não fica sujeita a regras que não aquelas de sua casa”, afirma ela, o que pode empobrecer a socialização na medida em que elas não precisam se adaptar a outras realidades, vivências e experiências com pessoas da idade delas.

Ela ressalta que existe também um movimento no Brasil para regularizar o homeschooling – o ensino de crianças em casa pelos pais. Isso também pode ter impactos na convivência e na socialização das crianças. Um projeto de lei sobre o assunto foi aprovado na Câmara dos Deputados em julho e ainda será apreciado pelo Senado.