Pesquisas podem revelar o que a gente quiser. Sempre. Darrell Huff (1913-2001), autor do clássico Como Mentir com Estatística, publicado pela primeira vez em 1954, fazia uma provocação a respeito. “Não seja um romancista, seja um estatístico. Há muito mais espaço para a imaginação.” Apesar da irônica advertência de Huff, não se pode negar que a leitura atenta de dados pode antecipar cenários e a tomada de decisões – tanto para aproveitar oportunidades quanto para corrigir rotas. Nesse contexto, o Relatório de Tendências Ford 2023 equivale a um menu degustação do que indica ser o novo comportamento do consumidor. Foram entrevistadas 16,1 mil pessoas com 18 anos ou mais de 16 países*, incluindo o Brasil. Há uma constatação global, a de que nos sentimos cada vez mais sobrecarregados. Seis em cada dez entrevistados dizem experimentar uma sensação de esgotamento com a vida em geral. A notícia boa é que a maioria acredita que tudo vai melhorar. A ruim: só daqui a cinco anos.

+ Um em cada 5 profissionais de grandes empresas no Brasil sofre de burnout

Nesse campo, os brasileiros ficam entre a bipolaridade e a resiliência. Apenas 52% sentem-se no limite do burnout. Mesmo porcentual de México e África do Sul, e à frente somente da Índia (45%), mas muito longe dos canadenses (69%). Por outro lado, quando a pergunta muda para saber se a pessoa está “impressionada com as mudanças que vêm acontecendo no mundo”, somos os líderes: 86% dizem sim. Ou seja, a gente se espanta com o planeta em disrupção, mas não se sente esgotado por isso. Um reflexo de que o Brasil não é mesmo um lugar para principiantes. O bicho tá pegando e o cara fica de boa dizendo, ‘tá tudo bem’. Estamos longe dos mais estressados (canadenses) e igualmente distante dos que menos se assombram com as transformações da sociedade atual (os chineses, 41%).

O Relatório de Tendências Ford 2023 se divide em seis blocos temáticos – a) Enfrentando Nossos Medos; b) Tomada de Posição; c) A Tecnologia que Amamos e Odiamos; d) Escapismo; e) Otimismo Cauteloso; f) Caminho para a Alegria. Nesta parte 1 do texto trarei os pontos principais de cada um deles. Na parte 2 e final (que será veiculada segunda-feira, 2 de janeiro), mostrarei os resultados específicos do Brasil nas seis grandes áreas da pesquisa.

A – Enfrentando Nossos Medos

Eventos recentes, como a pandemia e a invasão da Ucrânia pela Rússia, colocam a população global no modo insegurança. Entre os entrevistados, 68% dos homens e 65% das mulheres dizem ter tomado medidas para aumentar a segurança pessoal. Perguntados sobre o grau de confiança que sentem em relação aos grandes sistemas da sociedade, houve queda generalizada. A confiança diminuiu nas Estruturas Políticas (para 51% dos entrevistados), no Sistema Financeiro (44%), no Sistema Educacional (41%), na Mídia (39%) e nas Organizações de Pesquisa Científica (26%). Há outros receios ainda mais evidentes. Quatro a cada cinco pessoas (78%) afirmam que se nada for feito agora, algumas regiões do planeta se tornarão inabitáveis.

B – Tomada de Posição

Neste capítulo, o recado é bem mais assertivo às corporações. Para 83% das pessoas, as empresas devem pagar por qualquer dano ambiental ou humanitário que provoquem. Também quatro a cada cinco (78% dos homens e 82% das mulheres) querem leis mais rígidas para responsabilizar as empresas por seus danos ambientais e sociais. A imagem das companhias em relação a seu posicionamento de mundo, e não apenas sobre seus serviços ou produtos, é a grande transformação em marcha. Quase metade (47%) dos homens já tentou desencorajar algum amigo de fazer negócio com empresas de que não gostam, porcentual que cai um pouco entre as mulheres (43%). E cada vez mais postagens em redes sociais vão levar a boicotes a marcas, número que cresce quanto mais jovem for o consumidor: 56% na Geração Z (1997-2012), 57% entre os Millenials (1981-1996), 48% na Geração X (1965-1980) e 36% entre os Boomers (1946-1964). A classificação geracional utilizada aqui é a do Pew Research Center.

C – A Tecnologia que Amamos e Odiamos

Relação literalmente de amor & ódio. Para 73% dos entrevistados, é assustador quando as empresas sabem muito sobre eles. Paralelamente, 74% dizem que a tecnologia ajuda que se sintam conectados a outras pessoas. Uma preocupação: informações pessoais caindo em mãos erradas – medo para 43% dos homens e 50% das mulheres.

D – Escapismo

Talvez a melhor palavra para definir este bloco não seja escapismo, que ganha uma conotação de fuga para os brasileiros. A ideia é mais dos cuidados com a gente mesmo. E aqui há uma mudança e tanto de comportamento. Globalmente, 55% dizem que fizeram (ou fariam) uma viagem solo para o autocuidado. Dois a cada três afirmam que vão se privar menos de confortos da vida agora que o mundo parece ter se tornado um lugar em que o futuro pode mudar a qualquer momento. E pessoas de todas as gerações, com porcentuais entre 66% e 73%, dizem que se ganhassem US$ 1 mil extras gastariam com experiências e não comprando bens materiais.

E – Otimismo Cauteloso

Comprometimento é a palavra. E que bom. Cada geração diz que o papel de melhorar as coisas é dela. Ninguém passa a encrenca para o outro. Os porcentuais são de 73% na Geração Z (1997-2012), 75% entre os Millenials (1981-1996), 73% na Geração X (1965-1980) e 67% entre os Boomers (1946-1964). E 85% entre todos afirmam que mais amor & perdão são ingredientes necessários ao mundo atual.

F – Caminho para a Alegria

No último bloco, o Relatório de Tendências Ford 2023 aborda como as pessoas encaram a riqueza, o trabalho, o sucesso e, como não poderia deixar de ser, a relação com o automóvel. De cada dez pessoas, sete respondem que não é preciso emprego convencional para se ter sucesso. Na hora de falar do sentimento sobre o próprio carro, 54% afirmam ter prazer em dirigir, 51% curtem ouvir música e 53% ficar sozinho.

* Países em que a pesquisa foi realizada: África do Sul, Alemanha, Arábia Saudita, Austrália, Brasil, Canadá, China, Emirados Árabes Unidos, Espanha, Estados Unidos, França, Índia, Itália, México, Reino Unido e Tailândia