15/02/2017 - 9:27
“Soante que mesmo vi e assaz me contaram; e outros – as ruindades de regra que executavam em tantos pobrezinhos arraiais… Esses não vieram do inferno? Saudações. Se vê que subiram de lá antes dos prazos, figuro que por empreitada de punir os outros, exemplação de nunca se esquecer do que está reinando por debaixo. Em tanto, que muitos retombaram para lá, constante que morrem… Viver é muito perigoso.” (página 43)
Terras de posses rurais antigas, o norte e o noroeste mineiros vivem uma erupção de conflitos no campo ao estilo das áreas agrícolas em expansão. Cruzamento de dados públicos revela disputas agrárias em pelo menos 33 municípios dessa região. Boa parte envolve fraudes em processos de assentamento e ações para impedir o acesso de comunidades tradicionais de geraizeiros e veredeiros a serviços de energia elétrica e infraestrutura oferecidos pelo poder público.
Em Grande Sertão: Veredas, Riobaldo relata que, nas andanças pelo norte de Minas, ele mesmo viu a violência contra adultos e crianças nas disputas rurais, nos processos de grilagem e na ocupação violenta do solo, que resultavam na destruição de vilarejos e na matança de rebanhos em sítios e fazendas. Ao narrar o drama da terra, o jagunço usa uma das expressões mais conhecidas do livro: “Viver é muito perigoso”. Comum no século 19 e nas primeiras décadas do século 20, o problema social contado pela ficção de Guimarães Rosa se repete com frequência na vida real até os dias atuais.
Nos anos 1960, grandes grupos conseguiram concessões de 20 a 30 anos do governo federal para explorar carvão em Buritizeiro. Pelo acordo da época, veredeiros e geraizeiros, que já ocupavam as mesmas terras concedidas, não precisariam sair das frações das veredas. Em 1988, a União repassou para o Estado de Minas Gerais as terras que estavam cedidas às grandes empresas. No começo dos anos 1990, o então governador Newton Cardoso deu direito de propriedade das terras aos empresários, mas com a condição de que os geraizeiros e veredeiros fossem indenizados, o que não ocorreu. Empresas e famílias disputam a terra na Justiça.
Em Rio Pardo de Minas, a Justiça acatou ação civil pública e bloqueou bens de 42 empresários, advogados e outros profissionais liberais que estariam envolvidos em fraudes de registro de terras em São João do Paraíso, Novorizonte e Fruta de Leite. A ação argumenta que o grupo liderado pelo empresário José Edineo Meneguetti comprava glebas pequenas e registrava com tamanhos maiores, ocupando assim áreas devolutas onde vivem antigos posseiros.
Meneguetti critica a decisão da Justiça e afirma que a retificação de tamanho de propriedades está prevista pela legislação. Ele reclama que o questionamento da compra de terras em Fruta de Leite resultou no bloqueio de seus bens em São João do Paraíso, onde está estabelecido há 28 anos. A decisão, segundo ele, prejudica a empresa da família que gera cerca de 500 empregos diretos na produção de óleo, eucalipto e carvão. “O caso é de outro município, não está certo bloquearem meus bens em São João do Paraíso”, critica. “Sempre fui pessoa de respeito. Agora, fiquei com nome sujo. Disseram que a gente era grileiro, matador. Uma coisa é gerar 200 empregos numa grande cidade, outra é gerar 500 empregos numa região pobre como o norte de Minas.”
O empresário afirma que comprou em 2008 as terras que estão sendo alvo de ação judicial. Ele diz que o grupo que entrou com a ação fez um trabalho “bem montado” que convenceu o juiz de Rio Pardo de Minas. Meneghetti ressalta que está aberto a acordo com famílias que moram nas terras, desde que não cause mais prejuízos. “Acordo pode ter mais para frente.”
A expulsão de comunidades nativas das chapadas, as terras altas do cerrado propícias a grandes lavouras, provocou nas últimas décadas êxodo para as ilhas do São Francisco entre Pirapora e Manga. Alexandre Gonçalves, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do movimento Articulação Popular pela Revitalização do São Francisco, observa que novos conflitos têm surgido justamente nessas ilhas. “Com a seca, fazendeiros buscam as ilhas para dar refúgio aos rebanhos. Isso tem causado uma série de conflitos. A grilagem ocorre agora em todas as áreas das regiões do norte e do noroeste de Minas.”
A água está por trás também de uma disputa na área onde foi formado o lago da Usina Hidrelétrica de Irapé, em Grão Mogol. Famílias de geraizeiros reclamam que ficaram de fora do projeto desenvolvido pelo governo de uso das águas da represa. Casas de pelo menos 250 famílias não têm redes de água e energia. Brigas por água ocorrem ainda em outros dez municípios mineiros do Grande Sertão. Os conflitos mais acirrados são em Arinos, Porteirinha, Cônego Marinho e Bonito de Minas. Os dados são da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas, da CPT, de processos judiciais e de operações da Polícia Federal. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.