Relatório de 166 páginas da Polícia Federal no Amazonas detalha dois dias e duas noites de terror e barbáries que os ribeirinhos e indígenas do rio Abacaxis viveram em 2020. Um contingente da Polícia Militar do Estado, supostamente agindo para vingar a morte de dois policiais, ocupou aquele pedaço da selva entre os municípios de Borba e Nova Olinda do Norte, a 130 quilômetros ao sul de Manaus, incluindo a Terra ‘Coatã-Laranjal’.

Entre os dias 3 e 5 de agosto, um batalhão de cerca de 60 soldados, rostos cobertos com balaclavas pretas, fez incursões violentas, diz o documento. Invadiram barracos, torturaram famílias e crianças, dispararam rajadas de metralhadoras e fuzis e deixaram rastro de sangue e oito mortos.

Em nota ao Estadão, a Secretaria de Segurança Pública do Amazonas informou que ‘tem colaborado, desde o início das investigações do caso, a fim de esclarecer as circunstâncias do ocorrido’. “A conclusão do inquérito é parte do processo de esclarecimento dos fatos.” Leia abaixo a íntegra da manifestação do comando da Polícia.

Todos os policiais indiciados negaram envolvimento com o massacre.

Os delegados da PF, Celso Paiva, Thiago Monteiro e Rafael Grummt, os três da Superintendência Regional do Amazonas, concluíram pelo indiciamento de 13 investigados, entre eles o ex-secretário de Segurança Pública, coronel PM da reserva Louismar de Matos Bonates, e o ex-comandante-geral da corporação, coronel Ayrton Norte.

Louismar e Ayrton Norte, segundo a PF, ‘exerciam a função de comandar as graves violações de direitos humanos, dificultando que agentes públicos de outras instituições acompanhassem o caso e, por fim, garantindo que os onze executores não fossem investigados ou punidos’.

Os outros onze indiciados são todos policiais militares, de soldado a capitão.

O Abacaxis, afluente da margem direita do Rio Amazonas, entre o Madeira e o Tapajós, foi o palco da sangrenta Operação Lei e Ordem, deflagrada pela Polícia estadual após suposta tentativa de homicídio contra o então secretário Executivo do Fundo de Promoção Social do Estado, Saulo Moysés – na ocasião, fim de julho daquele ano, em plena pandemia, ele foi à região para pescar e levou um tiro de raspão no ombro.

Após o episódio que vitimou Moysés, a PM enviou para a área um pelotão que foi recebido a tiros. Dois policiais morreram, outros dois ficaram feridos. O comando da Polícia deflagrou, então, a Operação Lei e Ordem.

“Há relatos de os policiais terem despejado combustível no corpo das pessoas, no interior de suas moradias, e riscarem isqueiro, provocando excessivo pavor com objetivo único de dominação e intimidação de todos”, descreve o relatório ao qual o Estadão teve acesso.

As tropas subiram o Abacaxis a bordo do Arafat, uma grande embarcação, e duas lanchas da PM escuras blindadas com dois motores de 300 hp. Os policiais também usaram uma terceira lancha não blindada e uma conhecida como ‘Matrinchã’ com motor de 40hp.

O alvo principal das buscas era um homem conhecido por ‘Bacurau’, suspeito de ter liderado os ataques aos PMs. “Escondendo seus rostos por meio de balaclavas, sem permitir que as pessoas olhassem para eles, questionavam sobre o paradeiro de ‘Bacurau’, criminoso supostamente envolvido na morte dos policiais.”

Segundo a PF, por determinação do então secretário de Segurança foi elaborado um plano para envio do Comando de Operações Especiais (COE) e do Batalhão Ambiental da PM ao município de Nova Olinda do Norte, ‘especificamente rio Abacaxis, em razão de suposta tentativa de homicídio contra o secretário Executivo do Fundo de Promoção Social do Estado, Saulo Moysés’.

Depoimentos de ribeirinhos e indígenas revelam violências da tropa policial. Um capítulo emblemático do arrastão envolveu um menino de seis anos. Para intimidar sua família e forçar que revelassem onde estaria ‘Bacurau’, os soldados, primeiro, usaram um freezer horizontal para espremer a criança contra a parede. Depois, trancaram o menino no freezer.

“A morte dos dois policiais militares gerou grande comoção na corporação”, anota o relatório da Polícia Federal. “Não à toa o então comandante-geral, coronel Ayrton Norte, se desloca à Nova Olinda do Norte para assumir o comando das ações policiais na região.”

Logo que chegou à cidade, em 4 de agosto, o militar se reuniu em uma sala na prefeitura do município, por volta de 14h, com os comandantes das guarnições, dentre eles, o capitão Thiago Dantas (Batalhão Ambiental) e o capitão Aldo Ramos (Comando de Operações Especiais).

“Em seguida a essa reunião, ocorre a abordagem a Natanel, vítima de tortura praticada por policiais militares (…) fato que deve ser mencionado como forma de demonstrar a abordagem truculenta dos policiais desde quando chegaram à Nova Olinda”, ressalta o inquérito.

Os relatos indicam que coronel Ayrton Norte, já à noite, ‘se reuniu reservadamente com os chefes de equipe e deu a ordem para que no dia seguinte os policiais saíssem a campo para o local do confronto (Terra Preta) que sabia ser muito distante’.

“A hipótese que se trabalha é que nesse momento ele (comandante) passa, como diretriz, a seus subordinados, a orientação de vingar os policiais militares mortos e feridos”, acentua a PF. “No dia seguinte, 5 de agosto de 2020, já nas primeiras diligências, a guarnição da Polícia Militar Ambiental, dentro de uma Terra Indígena, Kwatá-Laranjal, longe do local onde os policiais militares foram mortos, aborda uma embarcação, executa dois irmãos indígenas, esquarteja e oculta o corpo de um deles.”

No mesmo dia, segue o documento, na comunidade Santo Antônio do Lira, ‘após invadirem domicílios, ameaçarem e torturarem moradores da comunidade, policiais militares executam Eligelson de Souza da Silva, alcunha ‘Guerra’, forjam o uso de uma arma de fogo por ele, desfazem a cena do crime, e se apresentam na Delegacia de Nova Olinda do Norte, onde alegam que a morte ocorreu em decorrência de legítima defesa’.

Segundo a PF, no entanto, ‘elementos obtidos no decorrer da investigação mostram que Eligelson ‘Guerra’ foi atingido pelas costas, quando, desarmado, tentava fugir da abordagem violenta dos PMs’.

A execução, segundo a PF, teria ocorrido ‘diante dos olhos do comandante-geral da Polícia Militar, Ayrton Norte, que estava na embarcação Arafat, atracado em frente à comunidade Santo Antônio do Lira e nada fez para reprimir/punir a ação dos policiais’.

Uma testemunha, o ‘Bigode’, contou que o coronel perguntou se ‘jogava com bandidos’ e, em seguida, arrematou. “Vamos ganhar dez mil, Bigode?’ – para os delegados da PF uma referência de prêmio pela captura ou morte de ‘Bacurau’.

Uma mulher contou as horas de terror que viveu dentro de sua casa. “No dia 5 de agosto, por volta de 6hs, estava dormindo em sua casa na Comunidade Santo Antônio do Lira e seu companheiro já estava acordado e arrumando as ‘tralhas’ para ir pescar junto de seus três irmãos; foi acordada por um policial militar, sendo retirada da cama de forma violenta, mandando ir para de fora de casa, empurrando para o chão, chegando a pisar nas costas para que deitasse, inclusive puxando pelos cabelos; do lado de fora o marido e os irmãos já estavam sofrendo agressões de todos os tipos por outros policiais como socos, chutes, utilizando madeira, cano das armas, de toda maneira que pudessem; ficou sabendo que os policiais também estiveram em todas as casas da comunidade e também na de um outro irmão, que sofreu agressões, tendo sido amarrado pelo pescoço com o punho da rede, chegando a desmaiar; todos os policiais estavam com máscaras pretas cobrindo toda a cabeça e boina, somente aparecendo os olhos; um dos policiais chegou a tirar a máscara para conversar com a declarante e perguntou se ‘sabia que o ‘Bacurau’ estava ali e que falasse logo pois a coisa ia ficar feita’; esse policial era bem alto e forte, com olhos saltados com óculos, por volta de 38 a 40 anos, não chegando a reparar o nome que estava escrito porque não era permitido olhar para cima e para o rosto dos policiais; utilizaram um arpão de matar peixes (‘zagaia’) e ficou ameaçando de furar que ‘ia atravessa o peito’, chegando a esfregar em seu rosto, sentindo medo de ser morta; não tem amizade, nem conhece ‘Bacurau’, trabalha com casa de farinha e extrativismo e o marido “catralheiro”; (…) entraram na casa e pegaram um carote branco de vinte litros de gasolina e começaram a despejar o combustível pelo corpo inteiro da declarante e de todos os outros, chegando a ficar intoxicada e queimando o corpo de irritação, ficaram marcas; não chegaram a acender algum fogo, mas ficaram riscando o acendimento de isqueiros; (…) em seguida, Eligelson, ‘Guerra’, desceu da casa e correu, quando ouviu os policiais começarem a atirar; foram muitos tiros e como estavam detidos no quarto não permitiram ver em quem atiraram, mas ficou sabendo depois, quando chegou em Nova Olinda do Norte, que era em ‘Guerra’; um policial veio até o quarto onde todos ficaram e pegou uma rede que estava dentro de uma bolsa, momento em que todos acharam muito estranho; ninguém imaginava que se tratava do ‘Guerra’, pois era pessoa próxima e que fazia planos para o futuro; chegou a espiar por uma brecha e ver que a rede estava dentro da lancha da polícia, não imaginando que seria o corpo de ‘Guerra’ (…) quebraram mobílias da casa, receptor e antena parabólica, telefone rural, levaram R$ 200,00 (duzentos reais) do auxílio emergencial, além dos chips e baterias dos celulares de todos.”

A PF indiciou os 13 investigados por homicídio qualificado, sequestro e cárcere privado, destruição, subtração ou ocultação de cadáver, vilipêndio a cadáver, constituição de milícia privada, fraude processual e tortura.

Todos os policiais negaram à PF envolvimento com torturas ou execuções.

VEJA A RELAÇÃO DOS INDICIADOS PELA PF

Louismar de Matos Bonates, coronel da Polícia Militar na reserva, ex-secretário de Segurança Pública do Amazonas;

Ayrton Ferreira do Norte, coronel da Polícia Militar na reserva, ex-comandante-geral;

Thiago Dantas Pinto, policial militar;

Pompilio Henrique de Lima, tenente da PM;

Ezio Ranger Peres Pimentel, subtenente da PM;

Josias Seixas de Brito, sargento;

Valdemir Pereira Júnior, sargento;

Jefferson Diógenes Castro de Souza, policial militar;

Paulo Henrique Reis da Costa, cabo da PM;

Jackson de Sousa Machado, cabo;

Aldo Ramos da Silva Júnior, capitão;

Getúlio Vargas Filho, sargento;

Pedro Alex da Silva Balieiro, sargento.

COM A PALAVRA, A SECRETARIA DE SEGURANÇA PÚBLICA DO AMAZONAS

“A Secretaria de Segurança Pública (SSP-AM) informa que tem colaborado, desde o início das investigações do caso, a fim de esclarecer as circunstâncias do ocorrido. A SSP-AM reforça que a conclusão do inquérito é parte do processo de esclarecimento dos fatos e que continuará apoiando as autoridades nesse sentido, com objetivo de que a Justiça prevaleça.”

“Em que pese essa fase da investigação tratar dos eventos em que ocorreram mortes, é importante descrever a violência com que foram realizadas as abordagens dos policiais militares, demonstrando o sentimento de vingança que os motivava”, segue o relatório.

Depoimentos ‘descrevem com clareza as violências, torturas e ameaças de mal grave sofridas pelos habitantes da comunidade Santo Antônio do Lira, com crueldade, incluindo contra criança, que foi agredida, chegando a ser imprensada contra a parede por um freezer horizontal e, após, confinada dentro deste equipamento’.