Ao começar a julgar o primeiro réu do 8 de Janeiro, a Procuradoria-Geral da República (PGR) e o ministro Alexandre de Moraes – relator no Supremo Tribunal Federal (STF) das ações penais e investigações sobre vandalismo na Praça dos Três Poderes – apresentaram a tese principal em defesa da condenação de parte dos 1.345 acusados. Moraes encampou o entendimento jurídico dos crimes multitudinários, ou seja, praticados por uma multidão, e votou pela condenação do cientista da computação Aécio Lúcio Costa Pereira a uma pena de 17 anos de prisão.

Essa tese foi usada em outros casos emblemáticos, como o massacre do Carandiru, e também costuma aparecer em episódios de confrontos entre torcidas organizadas de futebol e linchamentos. O raciocínio é que, quando um crime é cometido por muitas pessoas, não é possível nem necessário que a acusação descreva em detalhes cada ato criminoso e individualize as condutas dos réus. Em outras palavras, todos respondem por todos.

Até dezembro, o Supremo planeja concluir o julgamento de 232 acusados. Este grupo integra um primeiro lote de denúncias – consideradas mais graves – contra os que foram detidos no dia 8 de janeiro, na Praça dos Três Poderes. Em março, o Estadão mostrou que acusações formais apresentadas ao Supremo contra participantes das ações golpistas ignoravam condutas individuais com redações em bloco e textos praticamente idênticos.

‘Turba’

Escalado para coordenar as investigações, o subprocurador-geral da República Carlos Frederico Santos reiterou no julgamento de ontem a defesa da narrativa genérica de participação. “O Ministério Público Federal não tem que descrever a conduta de cada um dos executores do ato criminoso, mas o resultado dos atos praticados pela turba”, argumentou o subprocurador-geral perante os ministros no plenário do STF.

Segundo ele, não é necessário “descrever quem quebrou uma porta, quem quebrou uma janela ou quem danificou uma obra de arte”. “Porque responde pelo resultado a multidão, a turba, aquele grupo de pessoas que mantiveram um vínculo psicológico na busca de estabelecer um governo deslegitimado e inconstitucional”, concluiu Santos.

Na mesma linha, Moraes afirmou que, nos crimes de “multidão”, a autoria é “coletiva”. “As condutas são da turba, um insuflando o outro, instigando, induzindo, são copartícipes do crime”, argumentou. “Em virtude do número de pessoas, não tem necessidade de escrever que o sujeito A quebrou a cadeira do ministro Alexandre, o sujeito B quebrou a cadeira do ministro Fachin.”

O Ministério Público de São Paulo aprovou, em dezembro de 2016, uma diretriz sobre o assunto. “Nos crimes multitudinários e de participação englobada, não se exige a descrição minuciosa de conduta de cada coautor, bastando a demonstração de um liame entre o agir e a prática delituosa, a permitir o exercício da ampla defesa”, diz a orientação para atuação dos promotores e procuradores do Estado.

O promotor de Justiça Márcio Augusto Friggi de Carvalho, responsável pela acusação dos policiais militares no caso do massacre do Carandiru, escreveu um livro sobre o assunto, publicado em 2016, no qual diz que, nos chamados crimes multitudinários, a descrição detalhada é “física e humanamente impossível” – o que ele chama de “prova diabólica”.

A obra foi citada no julgamento do STF, mas a tese não é unânime na Corte. O ministro Kassio Nunes Marques argumentou que os crimes não podem ser atribuídos “indistintamente” a todos os réus, especialmente o de associação criminosa.

“Era dever da acusação ter esmiuçado as condutas de cada acusado, o que, na verdade, não fez”, disse. “A condenação pela prática do delito de associação criminosa exige identificação dos membros integrantes de um grupo determinado de pessoas que tenham se associado previamente para o cometimento de crimes. Nesse caso, não se pode presumir, data venia, que todos os acusados presos nos prédios invadidos ou nas imediações deles manifestassem indistintamente tal vínculo associativo.”

Votos

Nunes Marques votou para que Costa Pereira seja sentenciado a dois anos e meio de reclusão em regime aberto. Moraes, por sua vez, votou pela condenação a 17 anos de reclusão (sendo 15 anos e meio em regime inicial fechado). As penas propostas são discrepantes porque Nunes Marques defendeu uma condenação parcial, apenas pelos crimes de deterioração de patrimônio tombado e dano qualificado pela violência, considerados mais leves, e sugeriu a absolvição pelos crimes de associação criminosa, golpe de Estado e abolição violenta do estado democrático de direito.

O voto de Nunes Marques fez elo com o argumento de defensores, que, ao longo dos processos, reclamaram que as denúncias são genéricas, um “copia e cola”, e que as acusações não foram suficientemente individualizadas. Os advogados dos réus do 8 de Janeiro têm argumentado que os manifestantes que entraram nos prédios públicos não podem ser equiparados aos que vandalizaram as sedes dos Poderes.

‘Político’

O advogado Sebastião Coelho da Silva, que defende Costa Pereira, argumentou em sustentação oral que o julgamento é “político” e que o Ministério Público deveria ter especificado a conduta do cliente. A defesa alega que ele não participou da depredação, como acusa a Procuradoria-Geral da República.

“Ao colocar Aécio dentro de núcleo determinado, ele está colocando que ele tinha uma missão específica dentro dessa organização criminosa que estava instalada para a derrubada do poder. Se ele tinha missão específica, caberia ao Ministério Público dizer ‘a missão do Aécio é esta'”, afirmou o advogado do acusado. Ele argumentou também que os ataques de 8 de janeiro não foram uma tentativa de golpe de Estado. “Será que vamos inscrever na História que houve uma tentativa de golpe de Estado sem armas? Alguém tinha um fuzil? Houve impedimento de funcionamento dos Poderes?”

Após os votos de Moraes e de Nunes Marques, o julgamento foi interrompido e será retomado nesta quinta-feira, 14.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.