28/06/2025 - 18:54
Continente mais isolado do globo sente efeitos do planeta mais quente e da sobrepesca. Criar áreas de conservação ajudaria, mas iniciativa depende de coordenação internacional.É época de frio extremo e escuridão na Antártida. No interior do continente mais isolado do planeta, o termômetro pode descer a -89°C no inverno. Mas, em suas bordas, uma anomalia observada nos últimos anos inquieta a comunidade científica: a temperatura está subindo.
Jefferson Simões, referência brasileira em pesquisas polares e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sabia que esse momento chegaria. No outro polo do globo, o Ártico, o sumiço recorde do gelo já altera a geopolítica e mapas de navegação. Era questão de tempo até que o efeito começasse no Hemisfério Sul.
“Está diminuindo a área de mar congelado na Antártida, algo que a gente esperaria porque o oceano está ficando mais quente”, diz Simões à DW.
O verão deste ano registrou a segunda menor área de gelo marinho da história na Antártida, atrás apenas de 2023. Medições da agência europeia Copernicus registraram uma área congelada de 1.030 km2, 56% menor que a média mínima histórica de 2.390 km2. É como se uma área de gelo do tamanho do Pará desaparecesse no mar.
“É realmente um processo que está se intensificando. E, muitas vezes, os brasileiros não se dão conta que a Antártida é ‘logo ali’ e do que isso pode desencadear”, diz Simões.
O continente gelado influencia processos em lugares distantes de sua geografia. No Rio Grande do Sul, por exemplo, ele pode ser uma das forças por trás das tempestades extratropicais cada vez mais intensas, alerta Simões – que, no momento da entrevista, relatava o início de nova enchente em Porto Alegre, onde reside.
Crise silenciosa em andamento
Na Península Antártica, uma das mais aquecem, grandes embarcações de pesca chegam cada vez mais perto do que antes estava protegido pelo gelo. A pressão já se reflete numa espécie muito pequena, mas essencial para a manter a vida no local: o krill, crustáceo parecido com um camarão minúsculo.
“A pesca excessiva do krill, que é usado para fabricação de ração e uma série de coisas, impacta toda a cadeia alimentar da Antártida, dos peixes às baleias”, comenta Ronaldo Christofoletti, pesquisador em Ciências do Mar da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Estima-se que o krill corresponda a até 96% da ingestão calórica de baleias, focas e pinguins. O problema é destacado no estudo recente Todos os olhos voltados para a Antártida, da Fundação Blue Marine, que busca apoio internacional para aumentar as áreas de proteção.
Restrita ao “rodapé” dos mapas, o continente mais gelado e seco tem um papel semelhante ao motor do ar condicionado do planeta, compara Christofoletti. “A Antártida regula o clima. Ela tem um papel maior no Hemisfério Sul, para a América do Sul, África, Austrália e Nova Zelândia”, diz.
O oceano Austral, também chamado de Antártico, conecta as bacias oceânicas do Pacífico, Índico e Atlântico. Por isso, ele tem papel fundamental na distribuição global de calor, gases dissolvidos e nutrientes, considerado de extrema importância para impulsionar a circulação oceânica global.
Só pode pesquisar e manter a paz
De dimensão equivalente a 1,6 vez o tamanho do Brasil, a Antártida tem um regime de governança único no mundo. A paz, a convivência harmoniosa e a promoção de pesquisas científicas são premissas do Tratado da Antártida, assinado em 1951 por 53 países depois de décadas de tensão e disputas.
Para cuidar do ecossistema local, os signatários criaram, em 1982, a Comissão para Conservação dos Recursos Marinhos Vivos da Antártida. Para cientistas que pesquisam o tema, esse trabalho tem deixado a desejar.
“Diante do fracasso contínuo da Comissão em proteger a vida marinha e os ecossistemas das águas que cercam a Antártida, o fechamento total do oceano Antártico à pesca de krill tornou-se agora uma necessidade inquestionável”, alega o relatório.
O pequeno crustáceo é também o principal alimento das baleias-jubarte do Hemisfério Sul. Elas percorrem longas jornadas do mar gelado até a costa brasileira para se reproduzir, e voltam anualmente para a região da Antártida para se alimentar – percurso total que chega a 9 mil quilômetros.
“A gente vê agora várias áreas do litoral de Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia investindo num turismo de avistamento de baleias. E isso também pode sofrer impacto negativo com a falta do krill”, afirma Christofoletti. “Sem contar que essa rota das baleias é importante porque elas fertilizam as águas do oceano com as fezes.”
Brasil na Antártida
Faz poucos meses que Jefferson Simões voltou de uma expedição internacional científica de circunavegação na Antártida. A viagem, uma parceria entre institutos de pesquisa do Brasil e Rússia, foi liderada pelo pesquisador e levou 57 cientistas de sete países. A bordo do navio, eles coletaram dados relacionados à meteorologia, climatologia, física e química da atmosfera, além de testemunhos de gelo e amostras de diversas espécies.
“O principal objetivo é compreender as rápidas mudanças no oceano Austral. O que mais nos preocupa é o aumento da temperatura da água superficial e da acidez, que ocorre pela absorção do excesso de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera”, detalha Simões, lembrando que a redução de salinidade – ou acidificação – é consequência do derretimento das geleiras, que despeja mais água doce no oceano.
O Brasil é um dos membros consultivos do tratado e mantém desde 1984 uma estação de pesquisa no continente por meio do Programa Antártico Brasileiro, Proantar, criado dois anos antes. A presença é parte da Estratégia Nacional de Defesa, que reconhece a influência do oceano Austral nos recursos vivos e minerais disponíveis na costa brasileira.
“A Antártida é tão importante quanto a Amazônia para o clima do Brasil — na circulação oceânica e atmosférica. Isso até parece básico, mas as pessoas não se dão conta que o sistema ambiental, o clima, é único e indivisível”, alerta Simões.
Na UFRGS, várias equipes de cientistas tentam entender como as mudanças na Antártida influenciam a frequência e intensidade das tempestades extratropicais que se formam mais ao Sul e avançam sobre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Em décadas de pesquisa, já foram muitas descobertas sobre essa conexão.
“Nós detectamos por meio dos testemunhos de gelo a poluição por urânio e arsênio na Antártida. Isso provavelmente foi ocasionado por uma série de processos de mineração que aconteceram no Brasil e em outros países e chegaram até lá”, comenta Simões.
Para aumentar a resiliência do continente gelado, Christofoletti defende a criação de áreas de conservação marinha, apesar das muitas barreiras e interesses em jogo.
“O conselho do tratado tem 27 países consultivos que podem implementar as áreas protegidas – porque a gestão é compartilhada. E como tudo o que ocorre nos tratados da ONU, isso só pode acontecer por consenso. Por isso está tão difícil”, explica o imbróglio, citando China e Rússia como as principais opositoras.