Ao tomar posse, presidente dos EUA prometeu reverter o controle panamenho sobre a rota comercial, que afirmou estar nas mãos da China. Mas fatos contestam as pretensões de Donald Trump.Ao retornar à Casa Branca, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou uma série de medidas abrangentes que, segundo alega, visam “tornar a América grande novamente”. Entre outras promessas, reiterou seu interesse em “retomar” o Canal do Panamá, na América Central.

A hidrovia que conecta os oceanos Atlântico e Pacífico é uma das rotas de navegação mais importantes para o comércio global. Os EUA supervisionaram a construção do canal no início do século 20 e o controlaram até o fim de 1999.

“Fomos tratados muito mal por esse presente tolo, que nunca deveria ter sido dado, e a promessa do Panamá para nós foi quebrada. O propósito do nosso acordo e o espírito do nosso tratado foram totalmente violados”, disse o magnata nova-iorquino. Mas os fatos o contradizem.

Tratado, não “presente”

A transferência do poder sobre o canal dos EUA para o Panamá não transcorreu como “um presente”, como alegou Trump, mas sim foi o resultado de longas negociações. Washington transferiu o controle nos termos dos dois “tratados Torrijos-Carter” – nome que homenageia o general Omar Torrijos, então comandante da Guarda Nacional do Panamá, e o presidente americano Jimmy Carter. Os acordos foram assinados por ambos os países em 7 de setembro de 1977.

O Artigo 2º, parágrafo 2º do Tratado do Canal do Panamá menciona que o controle americano expiraria em 31 de dezembro de 1999. O outro pacto, conhecido como Tratado da Neutralidade, estipula, no Artigo 5º, que “após o término do Tratado do Canal do Panamá, apenas a República do Panamá deverá operar o Canal e manter forças militares, instalações de defesa e militares dentro de seu território nacional”.

A alegação de Trump de que o propósito do acordo teria sido foi violado é incorreta. De acordo com o Artigo 4º do Tratado do Canal do Panamá, ambos os governos se comprometeram a garantir a proteção e defesa do canal durante a transferência de poder. O Tratado de Neutralidade garantiu que ele permanecesse neutro e acessível a todas as nações, em tempos de paz ou guerra.

Carla Martínez Machain, professora de ciência política da Universidade de Buffalo, confirma que essa neutralidade permanece intacta: “Qualquer navio de qualquer país que deseje transitar pelo canal tem o direito de fazê-lo após pagar uma taxa.”

Além disso, o Panamá concordou que os EUA manteriam o direito de defender o canal se ele fosse ameaçado por um agressor estrangeiro. “Nenhum desses termos foi violado. Então, não estou certa dos motivos para Trump achar que o acordo foi violado.”

Suposto “controle chinês” sobre o canal

Também é falsa a afirmação de Trump que a China estaria operando o Canal do Panamá. “Nós demos ele para a China. Nós demos para o Panamá”, disse o republicano.

Como já mencionado, o Panamá é proprietário e administra o canal desde 31 de dezembro de 1999, após receber o controle dos EUA. A Autoridade do Canal do Panamá, uma agência do governo federal panamenho, opera e administra a hidrovia.

O chefe dessa repartição, Ricaurte Vasquez Moralez, afirmou recentemente ao jornal americano The Wall Street Journal que “as acusações de que a China administra o canal são infundadas”.

O presidente do Panamá, José Raul Mulino, também negou em dezembro de 2024 a presença de forças chinesas. “Não há soldados chineses no canal, pelo amor de Deus.”

A China, por sua vez, também nega categoricamente as alegações. A porta-voz do Ministério chinês do Exterior, Mao Ning, assegurou em dezembro que seu país “sempre apoiou o povo do Panamá em sua justa causa pela soberania sobre o canal”.

Pequim é o segundo maior cliente do Canal do Panamá, depois dos EUA, e está profundamente envolvido em projetos de construção no país centro-americano. Ainda assim, não há indícios de que controle chinês sobre o canal.

Especialistas já levantaram algumas ressalvas sobre dois portos operados há muito tempo por uma subsidiária da CK Hutchison Holdings, sediada em Hong Kong. A empresa, no entanto, administra os portos, não os possui, ressalva Martínez Machain. “Eles não tomam as decisões sobre quem pode ou não passar pelo canal; nem sobre quem é cobrado e o que passa pelo canal. Eles não são os donos do canal, não são os donos dos portos.”

Mortes de americanos durante a construção

Em seu primeiro dia no cargo, Trump afirmou que “os Estados Unidos […] perderam 38 mil vidas na construção do Canal do Panamá”. Os registros existentes não confirmam esse número.

A França começou a construção do Canal do Panamá antes de as obras passarem para o controle dos EUA, no início do século 20. O portal de internet da Autoridade do Canal do Panamá estima que 25 mil morreram, ao todo, durante sua construção. Dessas, “segundo registros hospitalares, 5.609 vidas foram perdidas devido a doenças e acidentes durante a era da construção americana”.

Os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC) atestam que a maioria das mortes foi resultante de doenças. “Durante o esforço para construir o canal nos anos 1880, mais de 22 mil trabalhadores da França morreram, muitos de malária e febre amarela, antes que as etiologias dessas doenças tropicais fossem compreendidas”, afirmam os CDC em seu portal. Ao todo, houve 55 mil empregados durante a fase de construção administrada pelos EUA.

Falando à emissora britânica BBC, Matthew Parker, autor do livro Febre do Panamá: A história de uma das maiores realizações do homem assegurou que quase todos que morreram durante a fase americana da construção eram de Barbados, “apenas cerca de 300 eram americanos”.