Presidente dos EUA não só promove uma guinada na política americana para Moscou, como ecoa alegações de Putin e passa a atacar Zelenski, aprofundando incerteza sobre destino de Kiev. Europeus rejeitam fala de americano.Ao chamar Volodimir Zelenski, de “ditador sem eleição”, o presidente dos EUA, Donald Trump, não apenas se voltou contra o governante ucraniano. Ele também assumiu a narrativa da Rússia sobre a invasão, aprofundando a incerteza sobre o destino de Kiev.

“Um ditador sem eleições. É melhor Zelenski agir rápido ou vai ficar sem país”, escreveu Trump em sua rede, Truth Social. Ele criticou ainda o líder ucraniano por “se recusar a realizar eleições” e por estar “muito baixo nas pesquisas na Ucrânia”.

Eleito presidente em 2019, Zelenski poderia ter se candidatado à reeleição em pleito previsto para março ou abril de 2024, mas que não ocorreu devido à lei arcial ditada pela invasão em grande escala da Ucrânia, iniciada por Vladimir Putin em 24 de fevereiro de 2022.

Guerra de palavras

As tensões têm crescido ultimamente após a súbita decisão de Trump de iniciar conversações com Moscou, excluindo a Ucrânia, antes de o anúncio dar lugar a uma guerra de palavras inédita entre os dois líderes.

Não só o rompimento repentino com o maior apoiador é preocupante para a Ucrânia e seus aliados europeus, mas a forma como Trump começou a ecoar abertamente muitas das alegações favoritas de Moscou.

Trump falou sobre como a “Ucrânia começou a guerra”, citou números falsos sobre a popularidade de Zelenski, instou-o a convocar eleições e descartou a adesão ucraniana à Otan: tudo isso teria soou suspeitamente familiar para muitos em Kiev, apontam analistas.

“Parece que ele está preparando uma grande venda de liquidação da Ucrânia”, comparou Max Bergmann, diretor do programa Europa, Rússia e Eurásia do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, em entrevista à agência de notícias AFP.

Trump aparenta estar “criando um pretexto para que os Estados Unidos simplesmente lavem as mãos do apoio à Ucrânia e se concentrem se relacionar com Moscou”.

Afinidade com Putin

De acordo com o especialista. Trump tem “afinidade com Vladimir Putin” e “com o estilo de homem forte de Putin”. Quando a Rússia invadiu a Ucrânia há quase três anos, Zelenski foi aclamado como um herói nos Estados Unidos.

Mas Trump não estava na festa; na verdade, mantinha relações tensas desde que sofreu o primeiro impeachment em 2019 por atrasar a assistência à Ucrânia, enquanto pressionava Zelenski a desenterrar sujeira da família de Joe Biden, antes da eleição de 2020.

O apoio à Ucrânia também não faz parte da agenda “America First” de Trump, e há muito tempo ele se opõe aos bilhões de dólares em ajuda enviados por Biden. Durante a campanha eleitoral de 2024, prometeu acabar com o conflito na Ucrânia antes mesmo de assumir o cargo, provocando ainda mais temores de que pressionaria Kiev a um acordo desfavorável.

Drástica reversão na política dos EUA para a Rússia

O anúncio chocante do republicano sobre seu telefonema com Putin em meados de fevereiro foi inicialmente amenizado com uma ligação para Zelenski logo em seguida.

No mais tardar na ocasião, parecia claro que Trump estava revertendo drasticamente a política americana de isolamento da Rússia ao telefonar para Putin e em seguida afirmar que ambos haviam concordado em “trabalhar juntos de forma muito próxima” para acabar com a guerra.

O comportamento do presidente americano irritou Zelenski, embora Trump tivesse destacado que o líder ucraniano estaria “envolvido” nas negociações, sem dar detalhes. E as tensões aumentaram depois que autoridades russas e americanas se reuniram na Arábia Saudita na segunda-feira.

Na terça-feira, nos salões dourados de seu resort em Mar-a-Lago, Trump declarou que Kiev começou a guerra. Zelenski respondeu dizendo que ele estava num “espaço de desinformação” russo. Trump se mostrou furioso, tachando Zelenski nas redes sociais de “comediante” e “ditador sem eleições”.

Houve críticas de alguns republicanos, incluindo o ex-vice-presidente de Trump Mike Pence. Mas logo ficou claro que não se tratava apenas de bravata: agora era a política dos EUA, com a Casa Branca republicando os comentários nas mídias sociais, e funcionários correndo para as rádios afim de defendê-los.

“Por que o presidente Zelenski não tentou acabar com essa guerra para o bem de seu país?” disse o conselheiro de segurança nacional Mike Waltz à emissora Fox News.

Abalo após telefonema

Para a Ucrânia e a Europa, o confronto intensificou o abalo causado pelo anúncio da nova coalizão Putin-Trump. “Muito da linguagem, incluindo ecoar argumentações do Kremlin, indica que talvez ele esteja apenas dando as coisas de mão beijada para a Rússia”, analisa Henry Hale, professor de Ciência Política e Assuntos Internacionais da Universidade George Washington.

Mas Hale ressalta que, embora os ucranianos devam estar preocupados, “não acho que devam perder toda a esperança: o estilo de negociação de Trump é deixar todo mundo desestabilizado”.

O vice-presidente dos EUA, J.D. Vance, até pareceu dar alguns conselhos a Zelenski, dizendo ao jornal Daily Mail que “falar mal” de Trump em público seria uma maneira “atroz” de lidar com o atual governo americano.

Europeus rejeitam alegações de Trump

Enquanto isso, os líderes europeus se esforçam para responder. O presidente francês, Emmanuel Macron, e o primeiro-ministro britânico, Keir Starmer – que se ofereceram para enviar tropas de paz para a Ucrânia – são esperados na Casa Branca em fins de fevereiro, mas também ligaram para Zelenski oferecendo apoio.

No telefonema com Zelenski, Starmer o defendeu como um “líder democraticamente eleito”. O líder trabalhista expressou seu apoio ao chefe de Estado ucraniano, assegurando ser “perfeitamente razoável suspender eleições em tempos de guerra, como o Reino Unido fez na Segunda Guerra Mundial”.

O chanceler federal alemão, Olaf Scholz, rejeitou abertamente as alegações de Trump nesta quinta-feira (20/02), confirmando que a Rússia começou a guerra, não a Ucrânia, e que Zelenski “é um presidente eleito democraticamente”.

Por sua vez, a Comissão Europeia afirmou que Zelenski foi “legitimamente eleito” em eleições “livres e justas”. Em entrevista coletiva, o porta-voz do órgão, Stefan de Keersmaecker, ressaltou que o país é “uma democracia”, enquanto a Rússia do presidente Vladimir Putin “não é”.

Já o ex-primeiro-ministro britânico e aliado de Trump, Boris Johnson, minimizou os comentários do magnata americano, argumentando que “não tinham a intenção de ser historicamente precisos, mas de chocar os europeus e fazê-los agir”.

Bergmann concorda que os comentários de Trump poderiam, de fato, ser um “verdadeiro ponto de inflexão” para os europeus, mas pondera: “Às vezes, os choques são eficazes para fazer você agir. Mas às vezes eles podem matar o paciente.”

md/av (AFP, EFE, DPA, AP)