27/10/2022 - 13:24
“É sempre essencial provocar surpresa”. A frase dita por Ruy Ohtake na última entrevista que concedeu ao Estadão, em 2019, resume o que propôs em décadas de carreira e trabalhos cheios de cores e curvas que se tornaram referências na paisagem de São Paulo. Quase um ano após a morte do arquiteto, então com 83 anos, o último projeto que assinou – e foi entregue – acaba de ser inaugurado em Barueri, na região metropolitana da capital paulista: o complexo cultural Praça das Artes.
Segundo Rodrigo Ohtake, de 37 anos, filho do arquiteto, o espaço é possivelmente o último projeto de grande porte e público de Ohtake. Outros foram elaborados posteriormente, mas ainda não realizados. “Talvez seja o último que ele tenha feito do começo ao fim. Não viu a finalização, mas viu toda a parte espacial sendo construída”, destaca. “Não tenho dúvida que (a Praça das Artes) já virou um marco.”
A proposta é consolidar o espaço como uma das maiores referências artísticas do Estado, pela programação, a arquitetura e os cursos livres e formativos, voltados a 9,8 mil pessoas. São cerca de 23 mil m2, divididos em salas com diferentes portes e propostas, teatro de 952 lugares, auditório, coworking, estacionamento, sede da Secretaria de Cultura e Turismo, palco aberto e áreas de convivência, dentre outros.
A expectativa é de atrair 300 mil visitantes por ano. O custo foi de R$ 110 milhões, de recursos municipais. Para o secretário municipal de Cultura e Turismo, Jean Gaspar, o complexo já nasceu como um marco arquitetônico, de autoria do mesmo autor de projetos icônicos de São Paulo, como o Hotel Unique, o Parque Ecológico do Tietê, o Instituto Tome Ohtake e o Conjunto Residencial Heliópolis, os Redondinhos.
“É um prédio que também é uma obra de arte”, descreve Gaspar. “Um cartão-postal, um ponto turístico na cidade que também coloca Barueri na rota cultural do Estado.”
A fachada do edifício é majoritariamente amarela, com arquitetura que misturas linhas retas, curvas e formas ovais, espelhadas e com detalhes coloridos. A parte superior lembra o formato de uma onda, em laranja e vermelho, que remete às cores do horizonte do entorno durante o pôr do sol. Em um dos três pavimentos, um terraço funciona como praça e receberá atividades e quiosques de alimentação.
Na parte interna, o palco aberto circular pode ser visto dos três pavimentos. As linhas curvas estão presentes em elementos coloridos ao longo do teto, translúcido e que permite a entrada de luz natural, e nas laterais do teatro. As cores estão no mobiliário, de autoria de Ohtake, e, em parte, pensado como divisória de alguns espaços. A escada lilás recorta o saguão, com formato de degraus na parte inferior.
O secretário de Barueri conta que o projeto começou a ser desenvolvido por Ohtake em 2017, quem ele descreve como um “gênio generoso”, que o convidava para almoços casuais nos quais demonstrava alinhamento com a ideia de trazer fluidez e integração aos espaços. “Conversávamos sobre a proposta pedagógica e artística”, comenta. A obra foi iniciada em 2018, ficando parada na pandemia por um ano.
A ideia é a que a ligação com Ohtake seja valorizada, segundo o secretário. Uma exposição sobre a obra do arquiteto é planejada para o próximo ano. Além disso, será homenageado no nome de um dos espaços do complexo, como o teatro ou o auditório, o que está em definição.
A inauguração oficial ocorreu no sábado, 22, com um concerto regido pelo maestro João Carlos Martins. Um show gratuito das cantoras Zizi e Luiza Possi nesta sexta-feira, 28, também integra a programação celebrativa. O início é de abertura gradual, com ativação dos espaços aos poucos. A cafeteria e o restaurante ainda serão selecionados e não estão em funcionamento.
O complexo fica às margens da Rodovia Castelo Branco e a menos de dois quilômetros da Estação Barueri, da CPTM. Está no terreno onde antes funcionava outro teatro e um ginásio municipais, que, segundo o secretário, eram de menor porte e enfrentavam problemas de acústica e de outras naturezas.
Embora seja divulgado apenas como Praça das Artes Barueri, o complexo tem o nome completo de Praça das Artes Antônio Augusto de Moraes Liberato. A denominação é uma homenagem ao apresentador Gugu Liberato (morto em 2019), que residiu no município, em Alphaville.
“A Praça das Artes é uma obra muito significativa dentro da carreira do Ruy”, descreveu ao Estadão o filho e também arquiteto, Rodrigo Ohtake. Entre os motivos que aponta, estão ser uma obra pública, cultural e de grande porte.
“Fazer obra que atenda uma demanda democrática e pública sempre foi algo que lhe deu muito prazer. Sempre foi um tipo de obra que tratou com muito carinho e empolgava muito ele”, comenta. Em março, outro projeto de Ohtake teve inauguração póstuma: o aquário de água doce Bioparque Pantanal, em Campo Grande.
Rodrigo comenta que a Praça das Artes reúne elementos característicos do trabalho de Ohtake. E que ser “muito reconhecível”, ter uma assinatura, um estilo próprio, foi algo que o arquiteto sempre buscou ao longo de seis décadas de carreira.
“A estrutura metálica interna com curvas e colorida (no teto do complexo cultural) é algo muito marcante nele, a fachada com muita ousadia, colorida e com curva”, avalia. “O amarelo forte, vibrante, e as curvas fazem desse edifício marcante. O fato de ser visível da rodovia, acho que ainda mais.”
Outro ponto que destaca é que o projeto valoriza os espaços comuns, “muito democráticos”, o que Ohtake aplicava mesmo em projetos de casas e edifícios. “Em Barueri, logo que se entra (no complexo cultural), tem um espaço-ateliê enorme, uma laje livre para as crianças poderem correr, criar, ter diversos tipos de programação.”
Ohtake conta que se sente privilegiado em entregar obras projetadas pelo pai, como em Barueri e no Bioparque Pantanal. “Tem sido um período de homenagem à vida do Ruy. Lembro bem de quando a Tomie (Ohtake, artista visual e mãe do arquiteto) faleceu, que ele falou que ‘agora é a hora de celebrar a vida da Tomie’.”
Influências de Niemeyer e Tomie
A obra inicial de Ohtake era parte da chamada escola paulista ou brutalista de arquitetura, cuja maior referência foi Vilanova Artigas, autor dos projetos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), na zona oeste paulistana, do Edifício Louveira, em Higienópolis, na região central, e do Estádio Cícero Pompeu de Toledo, no Morumbi, zona sul. Segundo especialistas, os trabalhos do arquiteto passaram ao longo das décadas a ganhar o estilo pelo qual se tornou conhecido, com uma influência especialmente da obra da mãe, Tomie Ohtake, e de Oscar Niemeyer.
Autor de livros sobre Ohtake e professor da FAU-USP, Rodrigo Queiroz explica que o arquiteto começou aos poucos a introduzir dois elementos influenciados por Niemeyer e Tomie que se tornariam característicos de sua obra a partir dos anos 1970: a curva e o uso intenso da cor. Essa transformação se tornou mais evidente nas décadas seguintes.
“Aparecem, em um primeiro momento, internamente”, diz. Depois, começam a aparecer no formato de terraços e outros elementos até chegar à forma e à cor do edifício como um todo, a exemplo do Hotel Unique (com o formato popularmente associado a uma fatia de melancia) e o Ohtake Cultural, onde está sediado o Instituto Tomie Ohtake, uma torre espelhada em tons vinho. “Com o passar do tempo, o Ruy começa a ser uma síntese espacial de uma relação do Niemeyer com a Tomie”, resume.
“Essa gestualidade se exacerba ao longo dos anos e talvez se aproxime ainda mais da mãe dele”, pontua. Entre os projetos simbólicos de Ohtake, estão os terminais Sacomã, o Hotel Renaissance, o Parque Ecológico Tietê e o Conjunto Residencial Heliópolis, mais conhecido como Redondinhos. “É uma arquitetura que acaba assumindo um papel de marco na paisagem, que chama a atenção.”
Professor de Arquitetura e Urbanismo na Mackenzie e editor na Romano Guerra Editora, com publicações que abordaram a obra de Ohtake, Abílio Guerra também destaca que o arquiteto foi um dos poucos nomes do meio que se tornou conhecido do grande público no País, para além do ambiente profissional, como ocorreu com Niemeyer, por exemplo.
Um dos motivos que aponta, além do estilo com padrões e cores fora do convencional, foi ter trabalhos variados, desde móveis e peças de design até casas, prédios comerciais e de apartamentos, espaços culturais, hotéis e parques, igualmente para públicos diversos, desde o alto padrão até a habitação social.
Outro ponto é que seus projetos, em grande parte, se tornaram marcos na paisagem assim que criados. “É uma arquitetura que configura o lugar”, como resume o professor. “Trabalhava com uma paleta de cores abrangente, não necessariamente com cores que, no senso comum, combinavam”, afirma.
“As formas livres, as cores de uma gama intensa e variada, deixam uma característica onírica, mais lúdica”, descreve Guerra. Na avaliação do editor, a obra de Ohtake tende a ser mais compreendida também no âmbito acadêmico ao longo dos anos, no qual não teve reconhecimento tão grande e recebeu críticas variadas ao longo das décadas. “É uma obra que seguramente será reconhecida por muito tempo.”