25/08/2004 - 7:00
Os londrinos dizem que o Palácio de Buckingham, residência oficial da família real, possui uma filial no Claridge?s, um dos mais requintados hotéis da capital inglesa. Ou no Savoy, outro ícone do luxo britânico. Ou, se preferirem, no Connaught e no Berkeley, dois monumentos incorporados à paisagem de Londres. A máxima, temperada pela típica ironia britânica, é uma referência ao permanente desfile de celebridades pelos imponentes salões de mármore e corredores atapetados dos quatro hotéis, pertencentes ao Grupo Savoy. Mas quem reina absoluto nesse ambiente é um brasileiro, sem qualquer sangue azul nas veias. Antônio Mazzafera, mineiro de 30 anos, tornou-se no início deste ano o responsável pela imagem dessas quatro grifes da hotelaria global. ?É um dos postos mais cobiçados do setor?, diz ele. ?O tamanho do prestígio equivale à extensão do desafio.?
Mazzafera tem a missão de lançar traços de modernidade em marcas conhecidas pela tradição, sem arranhar a imagem construída a partir de lendas que se tornaram mais fortes do que as histórias que a originaram. Conta-se, por exemplo, que, durante a II Guerra Mundial, um diplomata norueguês ligou para o Claridge?s pedindo para falar com o rei. Sem perder a fleuma, a telefonista perguntou: ?Com qual deles, senhor?? Quatro famílias reais, a norueguesa, holandesa, a iugoslava e a grega, estavam exiladas no Claridge?s, fugindo da ameaça nazista. No total, eram 10 monarcas hospedados nos quatro hotéis do grupo. Eles buscavam um ambiente que os remetesse, em lembrança e luxo, aos palácios que habitavam nas terras natais. A largura dos corredores do Claridge?s, por exemplo, foi calculada para que duas damas caminhassem lado a lado sem que seus vestidos de gala rodados roçassem um no outro. A rainha Elizabeth escolheu o Savoy para sua festa de coroação em 1953. ?É um público que não tem hábito de ouvir ?não??, afirma Mazzafera. ?Por isso, não há limites para nosso atendimento. A história confirma o lema e fazemos dela um instrumento de marketing.?
Em 1945, o rei Peter da Iugoslávia, exilado em Londres, havia transformado a suíte 212 do Claridge?s em sua residência. Sua mulher estava grávida e, como rezava a tradição, o filho só seria reconhecido como herdeiro do trono se nascesse em terras iugoslavas. Já que a família real não podia ir à Iugoslávia, ocupada pelos nazistas, a equipe do Claridge?s tratou de trazer a Iugoslávia até a família real. Sacos de terra foram importados clandestinamente do país para cobrir o piso da suíte. No dia do nascimento, o primeiro-ministro Winston Churchill declarou o andar do hotel território iugoslavo. E assim o príncipe Alexander tornou-se o legítimo sucessor de Peter.
Essa tradição é um poderoso atrativo para atrair hóspedes que paguem tarifas médias de US$ 700 por um pernoite em um dos hotéis do Grupo Savoy. Caso escolham a Brook Suit do Claridge?s, desembolsam US$ 13 mil. O quarteto de hotéis domina 50% do mercado de hospedagem hiperluxo de Londres. A taxa de ocupação atinge 92%, e a geração de caixa dos empreendimentos atinge 40% de seu faturamento. Por isso, no final de 2003, um fundo de investimentos irlandês, o Quinlan Partners, aceitou pagar US$ 1,5 bilhão para ficar com o Grupo Savoy, algo como US$ 2 milhões por apartamento.
O brasileiro Mazzafera tem a meta de tornar esses templos da sofisticação espaços ainda mais rentáveis. Por isso, nos últimos tempos várias regras pétreas dos hotéis foram quebradas. A administração dos restaurantes, antes dirigidos por funcionários do próprio grupo, foi entregue a chefs europeus. Heresia absoluta. Senhores ingleses protestaram e nunca mais sentaram em suas mesas. Mas hoje, pela primeira vez, todos os restaurantes dos hotéis têm pelo menos uma estrela Michellin.
Rapidamente se tornaram pontos badalados da cidade. Tony Blair, o primeiro-ministro inglês, é freqüentador do Gordon Ramsay, no Claridge?s. William, filho do príncipe Charles e de lady Diana, já recebeu dicas de gastronomia com o próprio Ramsay. Quando meses atrás os jornais publicaram que David Beckham tivera um romance com sua secretária, foi no Gordon Ramsay que o jogador levou a mulher Victoria para demonstrar que a notícia não abalara o casamento. Atenção: não adianta correr. Reservas, só para fevereiro de 2005. Mazzafera, natural da cidade mineira de Pouso Alegre, deu vida própria a cada negócio dentro dos hotéis, a exemplo do que fez com os restaurantes. Hoje a maior parte dos clientes dos bares, spas, serviços de banquetes não está hospedada nos hotéis do grupo.
Um projeto como esse abriu as portas do Grupo Savoy para Mazzafera. Em 2002, como consultor, ele desenvolveu um plano para o Berkeley?s. O objetivo era transformar o spa do hotel em um negócio mais rentável. Na ocasião, ele conheceu Geraldine McKenna, então diretora de marketing da rede. No início deste ano, quando ela assumiu a direção geral, convocou Mazzafera para substituí-la. Mazzafera já trabalhara no Blue Tree e na Visa do Brasil. Já havia também acumulado experiências internacionais enquanto estudava. Aproveitava as férias e passava três meses em cidades como Paris, Los Angeles, Londres e Colônia. Depois de se formar em Administração de Empresas, fez MBA em Harvard. Nessas andanças, tornou-se um poliglota ? fala inglês, espanhol, francês e arranha um ?alemão enferrujado.?
Nessas viagens, Mazzafera dedicava-se a estágios em turismo, e construiu um conceito de hotelaria semelhante ao que impera na rede Savoy. ?É preciso distinguir tradição de envelhecimento. A primeira, devemos manter e reforçar. A segunda, eliminar?, ensina. No primeiro caso, moram os detalhes e o atendimento que fizeram dos quatro hotéis ícones de requinte em hospedagem. Um exemplo: a magnífica escada de mogno maciço, marca registrada do The Connaught, recebe tratamento especial. Um funcionário do hotel passa o dia lustrando-a sem parar ? é sua única tarefa e para isso, e só para isso, é pago. O proverbial conforto do Savoy também é intocável. Assim que um hóspede entra em um toalete um funcionário está a postos para abrir as torneiras de água quente e fria e deixá-la na temperatura ideal. As camareiras consomem 15 minutos para arrumar cada cama. Mazzafera garante que nos detalhes está o segredo que leva alguns monarcas a um estado próximo ao nirvana. Anos atrás, o então rei do Marrocos, Hassan I, mudou de hábitos. Em vez de levar sua própria cama numa viagem a Londres, como sempre fazia, dormiu no leito oferecido pelo Savoy. Ao acordar, declarou que jamais experimentara sono tão reconfortante e mandou despanhar 25 daquelas camas para seus palácios no Marrocos.
No capítulo das regras envelhecidas, estava a obrigatoriedade do uso de terno e gravata nos hotéis. A prática foi abolida. Katharine Hepburn, estrela de Hollywood, agradeceria imensamente. Certa vez, no auge da fama, foi barrada na porta do Claridge?s por vestir calça comprida ? mulheres, só de saia ou vestido. Ela se negou a mudar o figurino e passou a usar a entrada de serviço. Dentro ela se encontrava com outro astro do cinema americano, Spencer Tracy, com quem teve um romance durante anos. Não se conhecem detalhes das ardentes noites de amor entre eles, mas uma famosa frase de Tracy dá a pista: ?Não que eu tenha a intenção de morrer, mas quando acontecer, não quero ir para o céu. Quero passar a eternidade no Claridge?s?.