04/07/2022 - 19:16
Em uma das narrativas fundacionais do pensamento filosófico, “A Apologia de Sócrates”, Platão, discípulo dileto do mestre de Atenas, narra a história do julgamento daquele que foi um dos primeiros no mundo ocidental a propor o questionamento racional como meio de se chegar à verdade sobre o mundo, sobre o que é ser humano e sobre o que cada um é e deve ser em particular. Tal método, fundamentado em questionar todas as “verdades” dadas como indiscutíveis, gerou grande indisposição entre os líderes da poderosa cidade de Atenas no final do século V a.C., que acabaram por julgar Sócrates como um “perversor de menores”, condenando-o por isso à morte.
Conta-nos Platão que, em certa ocasião, Sócrates foi consultar o Oráculo de Delfos para saber quem seria o homem mais sábio da Grécia. Ao ouvir a resposta de que ele, Sócrates, seria o mais sábio, ficou desconcertado. Ele bem sabia que havia outros que sabiam muito mais do que ele em diversos assuntos. Encafifado com o Oráculo que não podia mentir, Sócrates sai em peregrinação pela Grécia, entrevistando todos aqueles que ele e o povo consideravam grandes sábios, para assim checar a informação oracular. Nesta que talvez tenha sido a primeira pesquisa de campo da história universal, Sócrates chegou a uma importante conclusão: que todos aqueles que eram sábios em determinados assuntos, como política, arte ou agricultura, consideravam-se, por sua expertise, aptos a opinar a respeito de tudo e qualquer coisa. Foi então que Sócrates atinou sobre o acerto do Oráculo: ele, dentre todos, era o único que reconhecia que nada ou muito pouco sabia a respeito de quase tudo. Sócrates se convenceu de que ele devia ser o mais sábio porque era o único que sabia que nada sabia.
Eis uma lição tão genial quanto antiga e que, como dizia Dostoiévski, parece que “ainda não pegou”. É incrível constatar como, nos dias atuais, encontramos tanta gente convencida de que sabe alguma coisa sobre algo – ou, o que é pior, cheia de certezas a respeito de tudo. Nosso mundo está infestado de “sábios” (que, na verdade, não passam de sabichões) que não apenas pontificam a três por quatro sem nenhum constrangimento, como compartilham notícias e “revelações” bombásticas nas redes sociais (na sua esmagadora maioria, fake news) como se fossem verdades oraculares. E isso não apenas no âmbito da política, que hoje parece ser o campo mais saturado de sábios no universo, mas também nas empresas, universidade e até mesmo nas famílias. Nunca se viu tanta gente dona da verdade incontestável como nesses últimos tempos, especialmente em nossa gloriosa Pindorama. Nunca foi tão fácil, parece, ter certeza a respeito de tudo, e, em nome de uma suposta “verdade”, sentir-se no direito de cancelar quem não a aceita. Entretanto, vamos constatando que em um mundo com tantos “sábios” fica quase impossível se viver.
Gostaria de convidá-lo(a), leitor e leitora, nestes tempos tão tumultuados, a fazer o exercício proposto por Sócrates no século V a.C.: abrir mão, por um instante que seja, das suas certezas e admitir que, talvez, seja possível que não saibamos muito bem a respeito das coisas que a princípio nos parecem certas e verdadeiras. Convido-lhe, inspirado neste que foi o mais sábio dos sábios, a duvidar de si e convidar os outros a duvidarem também; a se abrirem para a dúvida, para a incerteza, a não julgarem a priori, mas, antes, questionarem, sobretudo. Admitir para si e para os outros que não sabemos ou que, pelo menos, não temos certeza a respeito dos temas e fatos que nos apresentam é o começo de uma atitude verdadeiramente sábia, que pode desencadear um movimento revolucionário em nossa sociedade. Não nego que, nos tempos que correm, assumir-se ignorante e colocar-se numa atitude questionadora antes que impositiva pode gerar desconforto, irritação e até ódio. Não esqueçamos que o fim de Sócrates não foi dos mais felizes. Entretanto, mesmo “cancelado”, Sócrates se considerou o mais feliz dos homens, por estar em paz com sua consciência até o fim.