30/11/2001 - 8:00
DINHEIRO ? Por que é tão difícil mudar a CLT, que tem quase 60 anos?
José Pastore ? São vários fatores. Ao longo desses anos, surgiu uma indústria do conflito que decorre dessa legislação. A legislação tem tantos detalhes que a probabilidade de cometer erros é grande, e a tentação de cometê-los é maior ainda. Quando algum erro é cometido vira conflito judicial. E aí existe uma comunidade enorme que vive disso. O Brasil tem 650 mil advogados e mais da metade é trabalhista. Além disso, há uma imensidão de juízes. Eles têm muitos processos, uma sobrecarga. Mas se você diz que vai tirar 10% dos processos dele, ele não quer.
DINHEIRO ? Isso significa poder…
Pastore ? Você que está falando. Além deles, há também a assessoria do juiz. Existe a fiscalização do trabalho e da previdência. São pessoas que estão atentas à violação, são pagas para autuar. Elas têm interesse em acompanhar essas violações. É uma comunidade forte, atuante, competente… Não se pode desconsiderar. Aí tem toda a estrutura sindical. Tem sindicato de gaveta com estatuto que permite que o presidente fique ali até morrer. Tem sindicatos altamente politizados ligados a partidos. O conflito dá manchete, dá promoção. O acordo, não. O acordo não dá ação trabalhista, não dá trabalho para juiz. Então quando surge a possibilidade de criação de leis que aumentam o número de acordos, como esse projeto recentemente aprovado, uma quantidade imensa de interesses é ferida. Como esse pessoal é bastante inteligente, eles usam os sofismas elaborados, mas desonestos e terroristas, para assustar a população. Como a população se assusta, e ela é eleitora, o parlamentar se assusta também e não vota. Houve um deputado que explicou em detalhes como isso funciona. Ele disse: ?Eu não consigo explicar para o povo essas mudanças. Vou votar a favor, mas sei que terei um grande desgaste político, porque meus adversários vão usar demagogicamente que eu cacei o dinheiro dos trabalhadores, que eu defendo os banqueiros, os empresários…?.
DINHEIRO ? Quais as principais conseqüências da flexibilização da CLT aprovada no Congresso?
Pastore ? Primeiro, ele tem o poder de incorporar ao mercado de trabalho formal, de modo gradual, uma parte dos trabalhadores sem carteira. E secundariamente tem o poder de ajudar a estancar o desemprego. Hoje 60% da população economicamente ativa não tem vínculo com a previdência, segundo a previdência social, ou seja estão na informalidade.
DINHEIRO ? Boa parte dessa informalidade se deve à CLT?
Pastore ? Existe uma heterogeneidade grande da informalidade. Mas a grande maioria é constituída de trabalhadores de pouca ou nenhuma qualificação, sem especialização, de baixa escolaridade e que trabalham em condições precárias. É esse pessoal que o projeto pode ajudar a puxar para dentro do mercado de trabalho. Para a esmagadora maioria, não há proteção e esse projeto pode ser um alento.
DINHEIRO ? Se são tantas vantagens, por que houve tanta polêmica em torno do projeto?
Pastore ? Em parte, houve grande desinformação em relação ao projeto, seja por má-fé, seja por incompetência. Os adversários disseram que ele acabaria com direitos dos trabalhadores. O projeto não revoga uma vírgula de nada, nem da CLT nem da Constituição. O que o projeto permite é o seguinte: se alguém quer negociar alguma vantagem, ela tem a mesma força da lei.
DINHEIRO ? Este é o momento conveniente para se mexer na CLT, já que há uma recessão e desemprego alto? Isso não daria margem para que as empresas forçassem condições desfavoráveis para os trabalhadores?
Pastore ? O momento para introduzir essa mudança não pode ser melhor do que este. Num momento como este, o empresário
não negocia nada, manda embora quem ele quiser. Hoje não há nenhuma restrição para demitir. Mas se ele quiser forçar os trabalhadores a um acordo artificial, ele vai enfrentar muitos obstáculos, mais complexos do que mandar embora. Digamos que
ele queira cortar as férias pela metade, pagar o 13º salário daqui a um ano e parcelar a multa rescisória na demissão. Ele só pode fazer isso se tiver um acordo coletivo na mão. E esse acordo tem de ser feito pelo sindicato.
DINHEIRO ? Mas a maioria dos trabalhadores é representada por sindicatos fracos ou sequer possui representação…
Pastore ? É verdade, mas mesmo sendo fracos, os sindicatos não conseguem negociar acordos lesivos aos trabalhadores. Se a diretoria assina um acordo contra os interesses dos trabalhadores, ela nunca mais se elege. Os empregados aprendem que têm de comparecer em massa na assembléia para impedir a aprovação. O recente movimento na Volkswagen mostra que a flexibilização pode evitar demissões.
DINHEIRO ? Os adversários do projeto diziam que ele enfraqueceria os sindicatos…
Pastore ? Ao contrário. Com a flexibilização, cria-se uma cultura de negociação, com fortalecimento dos sindicatos. O combustível do sindicato é a negociação. Os fracos vão se fortalecer e os incompetentes vão morrer. Quanto mais negociação, mais fortes serão os sindicatos.
DINHEIRO ? Os encargos sociais são considerados, pelas empresas, um obstáculo ao aumento da oferta de emprego. Não seria o caso de mexer nessa questão?
Pastore ? Os encargos decorrem da CLT. O custo de contratação, como férias, 13º salário, multa rescisória, é enorme. No Brasil, ele alcança 103,46% do salário. Nos Estados Unidos, é de 9,03%. Na Argentina, também é alto, mas fica em 70,27%. O projeto permite a flexibilidade desses custos. Exemplo: uma fábrica de brinquedos tem que trabalhar turbinada em setembro, outubro e novembro. Assim, terá de pagar muita hora extra nesses meses. Digamos que a hora extra é fixada em 100% pela convenção de trabalho. A empresa pode sugerir pagar 60%, acima dos 50% determinados pela Constituição, e dá 45 dias de férias em dezembro e janeiro. Faz a troca e evita a demissão. Antes da aprovação do projeto, ela não podia fazer isso.
DINHEIRO ? O que teria de ser feito para modernizar a legislação trabalhista?
Pastore ? Necessitaríamos de outro projeto para mudar a lei sindical e acabar com a unicidade sindical, o que depende de uma mudança do artigo 8º da Constituição. Aí é um briga de cachorro grande. As entidades representativas dos empregados e empregadores não se entendem sobre esse ponto. Dentro da CUT, por exemplo, há quem queira mudar a unicidade e há quem não queira. Na Força Sindical, é a mesma coisa. A CNI aceita discutir. Os bancos nem querem ouvir, pois temem sindicatos de gerentes nas agências. Então o racha é monumental. Imagine jogar isso no Congresso…
DINHEIRO ? Há um ponto mais polêmico que são as contribuições sindicais…
Pastore ? É uma questão complicada do ponto de vista técnico. O imposto sindical é ruim porque o sindicato arrecada, mas não precisa fazer nada para receber aquele dinheiro. Mas, por outro lado, ele perde a força na negociação, porque precisa contratar gente competente, reunir informações e, às vezes, fazer greve como instrumento de negociação. Isso tudo custa dinheiro e é caro. Então se a contribuição é compulsória, a grande maioria vai na carona: ?Eu não pago nada, ele negocia para mim e os bobos pagam?. Não seria justo porque enfraqueceria os sindicatos. Então é provável acabar com a compulsoriedade e criar o que em outros países chama-se contribuição de solidariedade. Ou seja, os que são beneficiados pelo trabalho do sindicato pagam algo por isso.
DINHEIRO ? Em sua opinião, quais os pontos mais nocivos na legislação trabalhista?
Pastore ? Há muitos pontos, mas quatro se destacam. O primeiro é a falta de espaço para negociação, que esse projeto começa a sanar. O segundo é a organização sindical esdrúxula, na qual a receita é garantida sem nenhuma prestação de serviço. O terceiro é monopólio sindical, em que para determinada categoria em determinado município só pode ter um sindicato. Há falta de concorrência. A saída disso é complexa. A quarta é Justiça do Trabalho, que julga conflito de natureza política e de natureza econômica. É o único país onde a Justiça tem todo esse poder. Um juiz entende de leis, mas não de produtividade, de eficiência. Mesmo assim, ele é obrigado a julgar índices de produtividade e coisas desse tipo.
DINHEIRO ? Quem deveria julgar esse ponto?
Pastore ? Deveria ser negociado entre empregadores e empregados e, no caso de impasse, ser resolvido por um árbitro escolhido por eles e especializado no assunto em discussão. Num hospital, seria chamado um administrador hospitalar. Numa obra, um engenheiro civil. O mais interessante é o seguinte: essa arbitragem nos países desenvolvidos é tão complexa e perigosa em relação aos resultados, que as duas partes esgotam ao máximo a negociação para evitar recorrer a ela. É como seguro de vida: você tem, mas não quer usar.
DINHEIRO ? Qual seria o impacto com uma eventual vitória do Lula, que hoje lidera as pesquisas para a Presidência da República, na questão da legislação trabalhista?
Pastore ? O Lula é ligado a um estilo de sindicalismo que privilegia as corporações. É o neocorporativismo, um corporativismo mais sofisticado. Assim como existe o neoliberalismo, há o neocorporativismo. Esse sindicato corporativista privilegia quem está protegido. Tenho impressão que o Lula tem um compromisso com essa clientela, esse eleitorado. Ele não deve desiludir esse eleitorado, deve encontrar uma maneira de dar aumentos salariais generosos para o funcionários públicos e de estatais. Não sei como vai conseguir, mas é a tradição dele. Não teríamos uma greve de 100 dias de professores, porque ele encontraria uma forma de dar aumento para eles.
DINHEIRO ? CUT e Força Sindical ajudam no amadurecimento das relações de trabalho no Brasil?
Pastore ? Elas amadureceram muito e tem ajudado a amadurecer as relações de trabalho. Agora, há facções que não querem mudanças porque estão ligadas a quem está bem protegido pela CLT. É o grupo das ex-estatais. Você acaba com as estatais no papel, mas não com a cultura das estatais. São os sindicatos de funcionários da Petrobras, Vale do Rio Doce, Eletrobrás, dos médicos, dos funcionários das universidades, etc. Esses sindicatos são quase todos ligados à CUT. Então todo mundo fala de desigualdade social, mas na hora de fazer as leis acentua-se essa desigualdade. Quem são os mais desprotegidos? São nessa ordem: os jovens, as mulheres, os de meia-idade, os trabalhadores rurais. O grosso da informalidade está aí e esse pessoal não tem representação. O Congresso nunca chama esse pessoal para uma audiência pública. Quem vai lá são os protegidos que querem manter a lei como está. É uma desigualdade social legalizada. A lei mantém os trabalhadores em primeira classe e segunda classe.