Puxado por um trator, o vagão sobe lentamente a estrada de terra. O veículo avança entre parreiras, em diferentes tons de verde, carregadas com cachos de uvas. Ao final da viagem, chega-se a um mirante, no alto de uma colina. Dali, avista-se ao longe mais plantações, um rio azul claro e as enormes montanhas do vale do Apalta. De perto, vê-se um pequeno terreno, num declive de 45 graus, marcado com uma placa Shiraz, especial. Seja bem-vindo, diz o anfitrião, um senhor alto e de fala pausada. É tempo de colheita. Desta pequena ladeira, trabalhadores ?acrobatas?, na definição dos donos da fazenda, vão cortar cuidadosamente as frutas da variedade Shiraz. As uvas serão usadas para preparar o Folly ? um vinho ?com atrativa cor rubi intensa, com borda violeta, aroma de frutos vermelhos e negros, cheio de sabor, uma bebida para guardar?, segundo o Guia de Vinos de Chile. Um dos melhores tintos do mundo, de acordo com a revista americana Wine Spectator. Um passeio pelos vinhedos da América do Sul revela surpresas belas e saborosas como a da Viña Montes, localizada a cerca de duas horas de Santiago, capital do Chile. Desde 1550, quando religiosos espanhóis plantaram as primeiras parreiras na região, produz-se vinho no Chile e na Argentina. Mas foi nos últimos cinco a dez anos que ocorreu a maior e melhor transformação nas vinícolas. Quando a Viña Montes começou a produzir o Folly, no início da década de 90, havia doze vinícolas tradicionais no País. Hoje, mais de cem empresas produzem vinho para exportação. Quarta maior produtora mundial da bebida, a Argentina está trocando a quantidade pela qualidade. Na última década, recebeu mais de US$ 1 bilhão em investimentos franceses, italianos e holandeses. ?Os vinhos argentinos são uma eterna promessa que finalmente está se concretizando?, afirma Frank Prial, crítico do New York Times.

O resultado dessa transformação pode ser vista numa viagem aos dois lados da Cordilheira dos Andes. Novos vinhedos se espalham pela região de Mendoza, na Argentina, e em torno de vales como os do Maipo, Maule ou Colchagua, na região central do Chile, perto de Santiago. Pode-se visitar desde empresas grandes e tradicionais, como a Concha Y Toro, a empreendimentos caseiros, onde se produz a bebida de maneira artesanal, o chamado ?vinho de autor?.

Vinho de autor. Um bom exemplo é a pequena e sofisticada Viña Aquitania. Criada em 1988 por dois enólogos da região francesa de Bordeaux, Bruno Prats e Paul Pontallier, junto com o chileno Felipe de Solminihac, a vinícola fica literalmente dentro de Santiago. Ali, as casas de classe média avançaram até cercar os 18 hectares plantados com uvas. Apesar do avanço da cidade, a paisagem ficou preservada. Quando se chega à propriedade, avista-se no meio da plantação a casa e a adega, em tom vermelho, construídas no estilo colonial espanhol. Onde termina a fazenda começam as imponentes montanhas com topo nevado dos Andes.

Além da vista privilegiada, a Aquitania oferece uma aula de como se produz vinho. Ali, tudo é feito sob a supervisão do enólogo Solminihac. Apenas cinco pessoas cuidam de todo o serviço. Até as etiquetas são coladas manualmente, uma a uma. Suas maiores especialidades são o tinto Paul Bruno, da variedade Cabernet Sauvignon, e o branco Sol de Sol, Chardonnay. Na descrição do Guia de Vinos de Chile, o Sol de Sol tem ?muito boa cor, amarelo intenso, algo dourado e brilhante?. Tem também ?aroma especial, com fortes tons minerais e algo floral?, seu gosto é ?intenso e expressivo, com leves tons de madeira?. Em resumo, um vinho ?com identidade própria, excelente, o segundo melhor Chardonnay do ano?. Difícil discordar.

Uma das explicações para o salto triplo de qualidade nos vinhos da América do Sul está não só nos terrenos e no clima, mas na disposição de arriscar. Chilenos e argentinos descobriram que podem ? e devem ? quebrar velhas tradições. O premiado Folly (louco, em inglês) ganhou esse nome porque os donos da Viña Montes ousaram plantar num declive onde ninguém apostava que dali sairia sequer uma sangria de qualidade. No Sol de Sol, Solminihac abriu uma nova área de plantação, numa região fria, a 650 quilômetros ao sul de Santiago. As uvas são colhidas de dia e transportadas de noite para Santiago. ?A região produzia vinhos velhos, mas com as novas tecnologias e os experimentos, está fazendo bebidas de altíssima qualidade?, diz José Alberto Zuccardi, um dos donos da Viñedos y Bodega La Agricola, que produz os vinhos Santa Julia, em Mendoza. Zuccardi sabe o que diz. Além de produzir alguns dos melhores vinhos argentinos, sua vinícola reservou terra, um laboratório e uma adega apenas para testar 32 variedades de uvas e suas combinações.

Assado argentino. Numa visita à propriedade dos Zuccardi, pode-se provar vinhos experimentais, como o da variedade de uva Ansellotta, recém-importada da Itália. A Santa Júlia funciona dentro da nova filosofia de trabalho das vinícolas chilenas e argentinas, de se produzir bom vinho e, ao mesmo tempo, receber bem o turista. Construída em madeira escura, a Santa Júlia apresenta exposições de arte e tem até uma loja com bebidas e apetrechos para os apreciadores de vinhos. Além de degustar a produção da casa, pode-se saborear um assado típico argentino, com doce de leite de sobremesa. Depois do almoço, descansa-se debaixo de um caramanchão com o teto coberto com uvas e vista para as parreiras e oliveiras e, ao fundo, os Andes. Tudo isso depois de experimentar um vinho como o Familia Zuccardi Q Merlot, que recebeu nota 90, reservada para bebidas de primeira linha, da revista Wine Enthusiast. A publicação inglesa The Winedoctor, descreve o Q Merlot com ?uma cor vibrante vermelha, aromas de amoras de verão, amenizadas por chocolate branco, com detalhes de café e carvalho francês. Delicioso sabor de fruta, com firme tanino e soberbo balanço de acidez, elegante e saboroso?. Tradução para os leigos: o vinho é delicioso.

Em qualquer visita que se faça hoje em dia às vinícolas chilenas ou argentinas é inevitável que se conheça belas adegas e se prove bons vinhos. Também é inevitável que os turistas saiam da degustação mais alegres do que chegaram. O bom tratamento faz parte do esforço de repetir o sucesso das rotas do vinho na França e na Itália. Por isso, as bodegas, como são chamadas, investem também na arquitetura e na localização das adegas. O esforço chamou a atenção até dos hotéis americanos Hyatt, de alto padrão. Há cerca de dois anos, o Hyatt abriu o primeiro cinco estrelas de Mendoza, para atrair e receber os turistas e os empresários do vinho. A construção aproveitou a fachada original do Plaza Hotel, um prédio do século 19, em estilo colonial espanhol. Dentro do edifício, o Hyatt instalou um Bistrô, com uma adega de 2.500 garrafas. Também construiu um cassino e trouxe duas massagistas tailandesas para equipar seu spa ? onde os produtos de beleza são feitos a base de vinho. O Hyatt quer repetir em Mendoza a experiência de sua filial de Santiago. Do prédio do Hyatt de Santiago, uma construção redonda, de onde se avista os Andes de todos os quartos, saem grupos para visitas diárias às vinícolas.

Galeria de arte. Em nenhum lugar, os novos investimentos são mais notáveis do que nas Bodegas Salentein, a três horas de Mendoza. Ali, a plantação se espalha por 340 hectares. O empreendimento é novo, sequer foi concluído. Quando estiver pronto, terá pousada, galeria de arte e loja de vinhos. O cenário é espetacular. Segundo os administradores, a vinícola foi construída em pedras claras para não chamar a atenção e atrapalhar a vista da Cordilheira dos Andes. Todas as salas são abertas ou separadas por portas de vidro. Vê-se as máquinas engarrafando a bebida e uma adega de madeira, com 4 mil barris de carvalho. O dono de tudo isso é um misterioso investidor holandês, que já produz leite e frutas na Argentina. Para o turista, o mistério pouco importa. Depois de provar o Salentein Merlot, ?cor borgonha intenso, com aroma de framboesa doce, com sutil sugestão de ervas aromáticas? e ?excelente estrutura e bem balanceado sabor de Merlot? é difícil pensar em outra coisa.