23/09/2016 - 12:40
O Dr. Cândido Pinheiro Koren de Lima, fundador da operadora de saúde Hapvida, é o médico que as pessoas esperam encontrar em um consultório de oncologia. Com seu jeito tranquilo e o tradicional bom humor cearense, ele é capaz de falar de assuntos espinhosos, como a desigualdade social brasileira, sem tumultuar o ambiente. Suas posições, no entanto, são firmes e bem fundamentadas. “O governo gasta um absurdo e o que chega à população é muito menos do que se ele pagasse o mesmo para um plano de saúde”, afirma o empresário, ao analisar o sistema de saúde pública do País. A Hapvida é a maior empresa de saúde do Nordeste e uma das cinco maiores do Brasil. Atualmente, a empresa administra 2 milhões de convênios médicos e 1,4 milhão de convênios dentais. Seu modelo de atuação é o de rede fechada. Mais de 80% dos atendimentos são feitos em seus 20 hospitais, 61 laboratórios e suas 71 clínicas médicas. Nessa entrevista, Dr. Cândido apresenta um modelo para a saúde brasileira, fala sobre o empreendedorismo nordestino e ataca o corporativismo da classe médica. “Infelizmente, nossos Conselhos de Medicina, em vez de defenderem o cliente, defendem o médico”, diz. Confira:
DINHEIRO – O Ceará é um celeiro de grandes humoristas, como Chico Anísio, Tom Cavalcante e Renato Aragão. Esse bom humor do cearense está refletido, de alguma forma, na forma como o sr. comanda a Hapvida?
DR. CÂNDIDO PINHEIRO – Não é só o cearense, não. O brasileiro de forma geral é muito positivo. Todo dia, quando eu começo a correr de manhã, eu agradeço, primeiro, por estar vivo, depois, pelos meus pais. Não nasci rico, mas não guardo nenhuma memória de tristeza. Finalmente, agradeço por ter nascido em uma época maravilhosa e numa região maravilhosa. O mundo todo briga por questões raciais, intolerância religiosa. Já nós somos um povo de paz. Às vezes ouço que o brasileiro devia ser mais reativo, derramar mais sangue, ser mais retumbante. Mas eu acho essa paz uma coisa maravilhosa.
DINHEIRO – Há, no entanto, muita desigualdade no País, especialmente no Nordeste, onde o sr. atua. Qual é o papel da iniciativa privada na resolução dessa questão
DR. CÂNDIDO – Aqui (no Nordeste) é onde tem desigualdade mesmo. A partir do momento em que a Hapvida cresceu e gerou 17 mil empregos, começou a diminuir um pouco essa desigualdade. Além disso, pelo seu perfil de custo, ela é uma empresa de primeiro emprego. Nesse sentido, a companhia ajuda a melhorar um pouco a vida no Nordeste e reduzir o sofrimento nessa região. Outro ponto é a noção de corresponsabilidade que nós temos. Ninguém nasce solidário. A maturidade é que dá essa condição. Agora, esses são efeitos colaterais do nosso negócio principal, que é levar saúde às pessoas. E o que permite que eles aconteçam é a maneira como buscamos os objetivos. O importante é a forma ética, moral e lógica que buscamos nossas metas. Até porque, é a única que é sustentável.
DINHEIRO – O Nordeste precisa de empreendedores?
DR. CÂNDIDO – Todo lugar precisa de gente que faça alguma coisa. Não com a finalidade, eu diria, de enriquecimento ou de agregar bens. Mas como uma maneira de justificar sua vida. Ter um propósito.
DINHEIRO – Nas últimas duas décadas, a região passou por um grande crescimento, favorecido, em grande parte, por programas sociais do governo. Como o Nordeste deverá se desenvolver daqui para frente?
DR. CÂNDIDO – O Nordeste será a região que demorará mais para sair da recessão. Os programas sociais murcharam e ainda somos muito dependentes deles. Mas essa política social, que nasceu no governo Fernando Henrique e continuou com o Lula, foi uma coisa fabulosa. Não me pergunte sobre qual é o ideal que você tem ao dar comida a uma pessoa que está com fome. E antes de criar um projeto para dar educação, pescar o peixe, tudo isso, você tem de parar a fome. O Lula fez isso, mas não foi ele que criou. Isso foi importante para a Hapvida? Claro! Quando se irriga o mercado com tanto dinheiro quanto eles irrigaram, a população que está em cima recebe sua parte. E depois de encher a barriga, a segunda preocupação é saúde.
DINHEIRO – O Nordeste ainda é desconhecido do resto do Brasil?
DR. CÂNDIDO – As empresas conhecem sim. A maioria dos empresários que participa de congressos e reuniões por aqui tem de conhecer. Talvez, conheçam mais o Nordeste do que, por exemplo, o Rio Grande do Sul.
DINHEIRO – A crise do Brasil trouxe um aumento do desemprego. Isso afetou muito o setor de saúde complementar?
DR. CÂNDIDO – Para a Hapvida não afetou. Não sentimos a crise. Acho que poderíamos começar a sentir agora. Se continuasse essa situação que estávamos vivendo, em algum momento seríamos atingidos. Algumas coisas ajudaram. À medida que o governo foi perdendo recursos, a saúde pública foi piorando ainda mais. Como muita gente perdeu qualquer chance de assistência, migrou para o plano de saúde.
DINHEIRO – Mas esse trabalhador que perdeu o emprego não é, justamente, o mais atingido pela crise?
DR. CÂNDIDO – Ah, mas o mercado informal no Nordeste é uma coisa impressionante. Eu fico bravo. quando eu vejo o mercado a céu aberto que existe ali na Catedral (Mercado Central de Fortaleza). Meu amigo, o Brasil todo vem comprar confecção ali! Aí eu vejo comerciantes e o prefeito brigarem, gente dizendo que tem de tirar esse povo da rua. Em Madri, tem um mercado a céu aberto, ‘um eurito’, como eles dizem, em que todas as ruas são fechadas, do mesmo jeitinho que em Fortaleza, só que muito maior. E nós aqui no Ceará, num País pobre, ficamos criando dificuldades. O mercado informal de confecção não paga imposto? Paga menos, mas paga. Porque o tecido que ele usa paga imposto, o dinheiro que ele ganha ele vai comprar alguma coisa que paga imposto. Por causa desse setor, estou vendendo plano individual como nunca.
DINHEIRO – A maioria das operadoras preferiu acabar com os planos individuais…
DR. CÂNDIDO – Aprendemos sobre outros nichos também. Existia um paradigma sobre a venda de planos individuais para idosos. O Jorge, meu filho, teve a ideia de analisar a sinistralidade do idoso. Descobrimos que compensa. Como ele paga mais caro, a rentabilidade é até melhor. Essa, talvez, seja a razão do sucesso do Prevent Sênior (plano de saúde concorrente) em São Paulo. Agora, isso é em empresas como a nossa que possuem rede própria, fechada.
DINHEIRO – Poucos países do tamanho do Brasil possuem uma saúde pública eficiente. Nos Estados Unidos, o sistema é privado, mas também cheio de problemas. Podemos criar um modelo para o País?º
DR. CÂNDIDO – Acho que a Colômbia conseguiu algo interessante. É meio como o Canadá, que tem saúde pública, só que privado. O governo resolveu pagar plano de saúde para todo mundo. O que o Estado faz é dar liberdade para a pessoa migrar de uma operadora para outra, com o mesmo preço. Uma empresa sempre vai ser mais eficiente do que o governo. O Estado tem de dar saúde a todo mundo, mas o seu papel é o de controlador. O governo gasta um absurdo e o que chega à população é muito menos do que se ele pagasse o mesmo para um plano de saúde. Eu vejo o que é administrar uma empresa com 17 mil funcionários. E fico imaginando como deve ser na saúde pública, com um Ministério da Saúde que muda de gestão a cada crise, sem um pensamento definido e um plano de longo prazo. Fora as interferências externas, inclusive do setor privado. É complicado demais.
DINHEIRO – O setor de saúde suplementar existiria, caso a saúde pública fosse de boa qualidade no Brasil?
DR. CÂNDIDO – Ninguém ia querer. Estou preenchendo uma lacuna que o sistema proporciona. Agora, a lição que eu deixo é de eficiência e qualidade. Não adianta só vender plano de saúde e reduzir custo. Eu tenho de pensar em como entregar o serviço com qualidade. Se eu fizer isso, não preciso temer pelo futuro da empresa. O governo se um dia quiser, e Deus queira que esse dia chegue, nós vamos entregar a Hapvida a ele. Por que não?
DINHEIRO – Hoje, na saúde suplementar e pública, se fala muito sobre prevenção a doenças. Como o sr. enxerga essa questão?
DR. CÂNDIDO – Eu sou alucinado por isso. A primeira vez que ouvi falar de prevenção em plano de saúde fui contra. Pensava que deveria dar atendimento, consulta. Porque é difícil de mensurar. O tempo me fez entender que eu estava no caminho errado. O pensamento no mercado é de que, para o plano de saúde, é melhor você não ir se consultar. Nós resolvemos fazer o inverso. Começamos com obstetrícia, em Recife, e vamos passar para todos os idosos. A ideia é exigir que o paciente nos use. Copiamos, inclusive, a ideia do SUS, que é boa, só não tem gerenciamento. Temos enfermeiros que vão à casa das pessoas. Na clínica, a grávida é atendida sempre pelo mesmo médico. Resultado: já tivemos dias na cidade sem nenhum recém-nascido em UTI, sendo que a média era de quase 20. Só 50% das mães faziam pré-natal. Estamos ultrapassando 90%.
DINHEIRO – Países como a França, que tem um excelente sistema de saúde, usam o atendimento domiciliar. Por que não fazer o mesmo no Brasil?
DR. CÂNDIDO – Existe um entendimento de que esse é o futuro. O custo é muito menor e é mais humano. O médico perdeu a humanidade, é preciso resgatá-la.
DINHEIRO – Essa falta de humanidade não é um problema de mercado, no sentido de que os médicos acabam preferindo especialidades voltadas à tecnologia, que possibilitam maior ganho financeiro, do que ao atendimento?
DR. CÂNDIDO – Não acho que é isso. Enfermeiros ganham menos do que o médico e não perderam esse foco. O problema foi a mudança de escola. Tínhamos no Brasil a escola francesa de medicina, que parte do clínico generalista e, depois, se for o caso, para as demais especialidades. Resolvemos copiar, de uma hora para outra, a americana, da superespecialização, sem a necessidade de passar pelo generalista. A mercantilização é influência dessa escola americana e, também, do despreparo das nossas faculdades. Eu nunca tive uma aula que me ensinasse a responsabilidade do lado humano. Era para ter. Hoje, se prescreve antibióticos para dor de garganta que custam quase um salário mínimo. Quem pode pagar por isso? O indivíduo é um todo, não é uma orelha ou uma garganta. Mas não posso culpar o médico, e sim a filosofia em que ele está inserido.
DINHEIRO – Essa filosofia tem de mudar, começando pelo governo?
DR. CÂNDIDO – Temos de provocar a mudança. Ela começa pela corresponsabilidade. Nosso grande exercício democrático ocorre a cada quatro anos, quando elegemos, por exemplo, um deputado que nem sabem quem votou nele, não conhece ninguém. Então, mudar esse modelo começa com uma reforma política, na qual deve haver o casamento entre a base e seus representantes. A partir desse entendimento, penso que o médico terá de ser escolhido da mesma maneira, com a mesma cobrança. Precisamos voltar ao espírito do médico de família, que, na pirâmide de atendimento, deve estar em contato com a base e ser corresponsável à medida que se sobe na direção da especialização. Agora, o sistema de plano de saúde é a coisa mais democrática que tem. O usuário, a cada mês, vota. No próximo mês, tenho de garantir que ele me escolha novamente.
DINHEIRO – Como o sr. vê o programa Mais Médicos?
DR. CÂNDIDO – Espetacular. Anticorporativista. Espetacular, de novo! Se está agregando algum benefício para a população, só pode ser bom. Quem está contra? A classe médica, que tem direito uma reserva de mercado, a preços acima do mercado, na região que ela quiser, na Aldeota (bairro de classe alta de Fortaleza), em Ipanema e na cidade de São Paulo. Ninguém quer ir para o interior do Piauí ou do Acre. Infelizmente, nossos Conselhos de Medicina, em vez de defenderem o cliente, defendem o médico. Agora, se isso vai ser feito com médico de Cuba, da Europa, da China, ou com aposentados, eu não sei. É preciso ter qualidade, sem bandeira, sem cor, sem ideologia e sem religião. O que interessa é a população ser bem assistida.