Houve bolo e parabéns. O aniversariante, quieto, observava da estante a alegria da família. Era a festa de 500 anos de Trionfi, soneti e canzoni, livro de Petrarca editado em 1488, entre os canais de Veneza, por um gênio dos primórdios das artes gráficas, Bernardinus de Novara. O Petrarca de páginas amareladas já está com 516 anos, e não envelhece. A ladeá-lo, pela direita, está Chronica del Rei Dom Emanuel, de Damian de Góes. À esquerda, desponta Memórias de um Sargento de Milícias. O volume com cinco séculos de existência é o mais antigo, por data de impressão, da Biblioteca de José Mindlin. Ele começou a erguê-la em 1927, quando passou a freqüentar sebos. Não parou mais. Nos anos 30, na Faculdade de Direito, pediu em namoro uma caloura, Guita Kauffmann, e foi logo alertando: levaria junto os livros. A coleção tem 35 mil volumes. Há 10 mil edições raras e 2 mil raríssimas. A ?brasiliana?, conjunto de obras destinadas à história do País, aos relatos de viajantes na gênese de Pindorama, é um tesouro respeitado em todo o mundo. É a mais completa coleção do gênero nas mãos de um particular. Na casa da rua Princesa Isabel, no bairro do Brooklin, em São Paulo, a literatura tomou o lar. Começou na sala onde até hoje está o Petrarca. Avançou num anexo, depois em outro. Mindlin, aos 90 anos, pousa no colo uma lupa alemã e informa: ?Moramos num quarto dentro da biblioteca?.

O acervo vive um momento especial. Acaba de desembarcar nas livrarias um par de pequenos grandes volumes. Não passam de 150 páginas, são pouco menores que uma embalagem de DVD. Um deles é do próprio Mindlin e chama-se Memórias Esparsas de uma Biblioteca. O outro é o Memórias de uma Guardadora de Livros, de Cristina Antunes, fiel escudeira da coleção desde 1981. Seu texto é uma pequena jóia dedicada aos segredos de uma biblioteca. Cristina conta como as estantes escapam do pó, aos cuidados de uma arrumadeira que recomeça do zero quando atinge o derradeiro volume. Narra o modo mais adequado para tirar um tomo da estante. Assim: não se pode puxá-lo pela lombada. O livro ao lado é empurrado para trás, põe-se a mão naquele que se deseja retirar e pronto. Cristina diz, também, com bom humor, por que não se deve emprestar livros. Para isso, cita um verso de um autor espanhol. ?Por meio de um livro emprestado começa a se desfazer uma biblioteca, como num ponto de fio solto numa meia.? O cuidado, a atenção para que um fio desfiado não puxe todo o restante, é uma resposta ao prazer com que, ao longo de uma vida, o ex-dono da Metal Leve construiu um tesouro. Indagado a respeito do valor do que tem em casa, ele se recusa a entregar números. Mas sabe-se que comentou com amigos, há alguns anos, que não teria pudor em oferecer US$ 30 mil por um livro que fora negociado a US$ 3 mil para uma família de franceses do Rio de Janeiro. Era Cultura e Opulência do Brasil, de André João Antonil, editado em 1711 e que até hoje é uma lacuna na coleção. ?Não perco o sono, não, quando deixo uma raridade escapar?, afirma Mindlin. ?Meu desejo sempre foi o de inocular o vírus da paixão pelos livros no maior número de pessoas.?

Esse vírus atingirá muita gente a partir de 2005, quando o acervo do Brooklin for transferido para um prédio de 11 mil metros quadrados na USP. Ali subirá o Centro Universitário Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. ?É o destino natural de uma coleção construída com amor?, diz ele. Há, evidentemente, um rastro de melancolia com a transferência do coração da biblioteca para a USP. Todos que vivem nela sabem que é necessária a mudança, respeitam a decisão e a generosidade da doação. Mas não há como fugir do incômodo. ?Será um vazio imenso?, reconhece Cristina. É um vazio feito de lembranças, de memórias. São elas que movem a biblioteca. Estão na capa dos livros recém-lançados e em muitos outros. ?Memórias?, no computador da rua Princesa Isabel, aponta para 339 entradas. Há 160 livros em que aparece a palavra memórias no título.

O tempo, enfim, é o senhor da biblioteca dos Mindlin. O passar dos anos. O tempo e a paciência. O tempo e as recordações. O tempo e o acaso. O tempo e a brincadeira. Induzido a dizer há quantos anos Cristina Antunes trabalha a seu lado, Mindlin espreme os olhos e dispara: ?Há uns 150?. Os sorrisos são interrompidos por Rosana Gonçalves, que ao lado de Cristina e de Elisa Nazarian compõem o que Mindlin, faceiro, chama de ?as três graças da Biblioteca?. Rosana traz uma boa nova. Localizou uma série de poemas de Pablo Neruda traduzidos para o português por Thiago de Mello. Convidado a participar de um colóquio, Mindlin queria declamá-los. ?A biblioteca é assim, sempre em movimento?, diz ele.

Na toada do tempo, cabe uma indagação: dá para ler tudo em 90 anos de vida? Não, não dá. Mindlin diz ter atravessado cerca de 8 mil dos 35 mil tomos da coleção ? sem contar as sucessivas vezes em que devorou obras como Grande Sertão: Veredas, o predileto, e do qual ostenta um original revisto e anotado pelo próprio Guimarães Rosa. ?Sei que daqui por diante não poderei ler muitos mais?, diz. ?Outros lerão os livros que não li.?

Nonada, é postura modesta de um homem que, há cinco anos, contratou uma jovem cozinheira mineira, Raquel Romeira Batista, então com 27 anos, e a introduziu no mundo da literatura. Raquel está lendo pela segunda vez Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Tem na cabeceira A vida por um fio, de Dráuzio Varela e, evidentemente, o livreto de Cristina Antunes, que a ajudou também a estudar, especialmente ciências exatas, para ser aprovada no vestibular de enfermagem. A trajetória intelectual de Raquel ajuda a entender o que significa viver dentro de uma biblioteca aonde o tempo corre num outro ritmo. ?Antes só lia esses livrinhos melosos, vendidos em bancas de jornais, do tipo Júlia e Bárbara?, diz ela. A favor da quituteira dos Mindlin, para comprovar o esforço pessoal, cabe uma observação: a cozinha (além dos banheiros) é o único lugar da casa sem livros.

O PRIMEIRO
Discurso sobre a História Universal, de Jacques Bénigne Bossuet ? 1740

Foi comprado quando José Mindlin tinha apenas 13 anos de idade. ?Talvez tenha sido o começo de todo o meu fascínio por obras antigas?, resume. É um livro sem muita importância entre os especialistas. Curiosamente, porém, um outro colecionador europeu diz ter iniciado sua coleção com esta mesma edição de Bossuet.

 

MAIS ANTIGO
Trionfi, soneti e canzoni, de Petrarca ? 1488


Tem 516 anos, é mais velho que o Brasil. Foi produzido em Veneza por Bernardinus de Novara, numa edição ricamente ilustrada. É uma obra-prima entre os incunábulos, como são chamados os volumes impressos até 1500

 

UMA AUSÊNCIA
História da Província Santa Cruz, de Pero Magalhães Gândavo ? 1576

Mindlin teve a chance de comprar esse livro de um colecionador alemão nos anos 40. O diretor da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro também entrou na disputa ? e a venceu. ?As bibliotecas públicas sempre têm prioridade?, resume Mindlin.

 

O MAIS RECENTE
Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga ? 1810

Já existe na biblioteca da rua Princesa Isabel um volume dessa série rara, a primeira edição brasileira, restaurada por Guita Mindlin. Mas o colecionador sonhava em conseguir um exemplar em melhor estado. Na semana passada, uma historiadora argentina o localizou.

 

O SUMIDO
Projeto de Belo Horizonte, de Aarão Reis ? 1897

É o livro com os esboços originais do engenheiro que desenhou a capital mineira no final do século XIX. ?Sumiu há uns dez anos, não há meio de localizá-lo?, diz Mindlin. ?Ah, como ele já foi procurado por nós.?