DINHEIRO ? Por que o processo de abuso de poder econômico contra as montadoras?
HUGO MAIA DE ARRUDA PEREIRA ?
Desde que começou a história do carro popular, dez anos atrás, o relacionamento entre montadoras e concessionárias piorou. Antes, no início do governo Fernando Collor de Mello, além da abertura para os carros importados, houve uma modificação na lei que tirou a área demarcada. Por ela, o concessionário atende toda estratégia da marca e assina contrato de exclusividade. Em contrapartida, a marca definia um território onde só haveria aquela concessionária. O Collor tirou o conceito da área demarcada. Mas é claro que as montadoras não colocaram uma concessionária ao lado da outra.

DINHEIRO ? Mas isso não beneficiaria o consumidor?
HUGO MAIA ?
O Código de Defesa do Consumidor já permite que ele compre onde quiser. Mas não permite que a concessionária ofereça seus veículos fora de sua área natural de influência. Se alguém que mora em São Paulo estiver passeando em Belém do Pará e quiser comprar um carro, a concessionária de lá é obrigada a vender. O que não pode é uma concessionária de outra cidade vir vender carro em São Paulo.

DINHEIRO ? Por que não pode?
HUGO MAIA ?
Porque a mesma concessionária que vende presta a assistência. Ninguém leva um carro de São Paulo para fazer revisão em Belém. A parte do lucro, que é venda, fica com um e o ônus das revisões gratuitas fica com outro.

DINHEIRO ? Isso, de concessionárias venderem para outros Estados, está acontecendo?
HUGO MAIA ?
Está acontecendo. Quando surgiu o carro popular existiam quatro marcas de automóveis no País, sendo que uma delas, a Autolatina, era uma empresa só e reunia Volks e Ford. A Fiat tinha o Mille, a GM o Chevette, a Volks o Gol e a Ford teve que fazer um híbrido, um Escort com motor 1.0. E só elas tinham carro 1.0. Dominavam 100% de um mercado que representa 70% das vendas de veículos do País. Em qualquer economia isso se chama concentração de poder. Elas receberam um caminhão de vantagens para fazer o carro 1.0. As concessionárias reduziram sua margem de lucro de 13%, 14% para 11%, os trabalhadores deram sua contribuição suspendendo greves, trabalhando com produtividade. O governo reduziu o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para 0,1% e liberou uma série de financiamentos. E as montadoras prometeram baixar o preço, aumentar o emprego e alavancar o mercado.

DINHEIRO ? O sr. ainda não respondeu o por quê do processo por abuso de poder…
HUGO MAIA ?
Existem donos de concessionárias que são ricos, mas na atividade predominam médias empresas que trabalham com um único fornecedor e que, por isso, têm pequena capacidade de luta. Havia no Brasil quase 5 mil revendas de veículos. Hoje são cerca de 4.100. Muitas quebraram porque as montadoras, para aumentar mercado, jogam um concessionário contra o outro. Elas dão mais carro para uma revendedora de Catanduva e a manda vender em São Paulo. Aí as concessionárias de São Paulo são obrigadas a baixar o preço.

DINHEIRO ? Foi só esse o motivo do processo?
HUGO MAIA ?
Não. Tem mais. Em qualquer lugar do mundo é proibida a venda casada. As montadoras só entregam um determinado número de modelos populares, ou de um carro que está vendendo, se a concessionária levar também um certo tanto de carros que não estão vendendo. Fazem uma tabela dos modelos que vendem bem e dos que estão encalhados e empurram. Quem não topa fica sem nada. O carro é um bem de consumo durável que precisa de assistência. Quem é que faz recall? Quem é que troca as peças dentro dentro do padrão que não dá prejuízo para a marca?

DINHEIRO ? Peças que normalmente são muito mais caras nas redes autorizadas que em qualquer loja de autopeças…
HUGO MAIA ?
Porque nós só podemos comprar peças das montadoras, que fornece como sendo original de fábrica. Se a fábrica de autopeças fornece para a montadora, a concessionária deveria poder comprar direto da autopeça. Mas não pode. E como é que essa peça chega para o consumidor? No mínimo 250% mais cara do que em lojas de autopeças.

DINHEIRO ? Por isso que é muito mais vantajoso, após a garantia, fazer manutenção em oficinas independentes?
HUGO MAIA ?
Nem sempre. Se o seu carro quebrar em outro Estado o seu mecânico vai lá te prestar assistência? A concessionária te dá uma cobertura nacional. Dificilmente um mecânico que atende qualquer um poderá ter os equipamentos sofisticados de cada marca. As nossas pesquisas também mostram que o consumidor confia nas peças das concessionárias porque em caso de defeito têm para quem reclamar.

DINHEIRO ? E por que as peças de fábrica são tão caras?
HUGO MAIA ?
É por isso que estou indo ao Cade. A montadora é dona do mercado e não deixa a concessionária comprar autopeças no mercado, da marca que ela usa. Com o poder que elas têm deveriam estar comprando peças muito mais barato porque compram para a produção e para a reposição. Ninguém deveria ter preço melhor que a montadora. Mas nelas, a margem de lucro nas autopeças é maior que nos veículos.

DINHEIRO ? Se a situação é tão draconiana não é melhor mudar de negócio?
HUGO MAIA ?
As montadoras são donas da concessão e nem sempre autorizam a venda ou transferência. E não explicam por quê. A lei diz que o comprador tem que ter capacidade gerencial, financeira e idoneidade. Quem tem estas três coisas deveria poder comprar uma concessionária. Mas as montadoras não explicam quando não autorizam a transferência. É muita concentração de poder nas mãos de quatro fábricas.

DINHEIRO ? O que mudou com a entrada das novas montadoras no Brasil?
HUGO MAIA ?
Quantos carros Renault e Peugeot estão produzindo? Não tem mercado para todo mundo. Pega a rede Fiat e veja quanto amargou para chegar onde chegou. Não tem número de veículos para consertar, não tem número de peças suficientes para trocar. O começo é difícil. Por que as novas montadoras fazem questão de ressaltar o número de concessionárias? Porque isso é importante para qualquer marca.

DINHEIRO ? Então, não mudou nada?
HUGO MAIA ?
As novas marcas, para formar a sua rede, tiveram que negociar em melhores condições. Mas, a Ford, por exemplo, tem hoje uma associação de ex-concessionários maior que de concessionários. Muitos fecharam e estão na Justiça tentando receber o que acham que a Ford lhes deve.

DINHEIRO ? A relação entre as partes parece tensa.
HUGO MAIA ?
Só é amistosa quando você se submete às diretrizes da montadora. Você vê GM e Fiat fazendo joint-venture. A Daimler comprando a Chrysler. Uma concessionária não pode comprar outra se a montadora não autorizar.

DINHEIRO ? E o que vocês querem do Cade?
HUGO MAIA ?
O Cade é um tribunal. E deve fazer aquilo que a Secretaria de Direito Econômico não fez, que é investigar o poder das quatro grandes montadoras. O secretário Paulo de Tarso Ribeiro só ficou trocando cartinhas e ainda mandou abrir processo contra a gente.

DINHEIRO ? As concessionárias também não foram chamadas para discutir a unificação do IPI. Vocês estão ruins de lobby?
HUGO MAIA ?
Esse vai ser outro golpe contra o consumidor. Nessa reforma tributária do setor automotivo o imposto sobre o frete vai ser pago pela montadora. Esse valor vai ser embutido no preço do carro. Hoje, o consumidor sabe quanto a concessionária paga pelo frete. Vai deixar de saber. Você já viu o comércio ter alguma força neste País? Nós não temos incentivo fiscal. Só quem deve tem. A montadora já levou. E é ouvida porque o governo tem que receber os incentivos.

DINHEIRO ? É verdade que só se consegue concessionária com a ajuda de um político?
HUGO MAIA ?
Se isto é verdade, significa que as montadoras têm um poder exagerado, pois só com um padrinho é possível conseguir a concessão. Preciso equilibrar o diálogo. Quando a SDE arquivou nosso processo, deu um atestado de idoneidade para as montadoras e fechou a porta para qualquer consumidor reclamar contra elas.

DINHEIRO ? Como vocês pretendem reverter essa história no Cade?
HUGO MAIA ?
O Cade é técnico. Nós só queremos que mande investigar as denúncias que estamos fazendo. Só isso. Aí deixa de ser jogo de palavras. E o consumidor poderá ir ao Procon contra as montadoras.

DINHEIRO ? Se o IPI for unificado, as concessionárias também vão precisar vender menos veículos para ter o mesmo lucro?
HUGO MAIA ?
Claro (ironizando). O brasileiro tem dinheiro sobrando, vai comprar um carro mais caro. A renda per capita é alta, os juros são baixos. Nada é bem assim. Me dê um carro bom a preço desses populares, que são caríssimos, que eu vendo todos. Para nós concessionários o volume é importante porque cria mercado. Quem comprou um popular pode, depois, usá-lo como entrada em um modelo melhor.

DINHEIRO ? Mas as montadoras dizem que o carro brasileiro é o mais barato do mundo, cerca de US$ 7 mil o popular…
HUGO MAIA ?
O salário do brasileiro que é um dos mais baixos do mundo. Com meia renda per capita você compra um carro bom nos EUA. Aqui você precisa no mínimo três.

DINHEIRO ? Com as fusões o poder delas vai aumentar mais?
HUGO MAIA ?
É por isso que foi criada a WADDA, uma organização mundial dos vendedores de carros. As montadoras concentram cada vez mais poder e precisamos enfrentá-las.