Passado o pior momento da pandemia, a normalização da circulação de consumidores pelas ruas das cidades tem impulsionado o desempenho econômico do varejo brasileiro nas regiões mais dependentes do consumo presencial. Já nos Estados onde o trabalho remoto é mais comum, como São Paulo e Rio de Janeiro, as vendas permanecem abaixo do patamar pré-crise sanitária. Os dados são de um estudo da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), obtido com exclusividade pelo Broadcast, sistema de notícias em tempo real do Grupo Estado.

O levantamento cruza resultados do volume vendido pelo varejo apurados da Pesquisa Mensal de Comércio, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com informações sobre a mobilidade da população captadas pelo Google Mobility. Mostra que os Estados com maior recuperação de circulação de consumidores foram os que apresentaram também os melhores desempenhos do comércio varejista ante o pré-pandemia.

Na região Norte do País, as vendas no varejo operavam em junho em nível superior ao de fevereiro de 2020, no pré-covid, em cinco das sete Unidades da Federação São elas: Roraima (17,1% acima do patamar pré-pandemia), Pará (15,7%), Amapá (14,6%), Amazonas (6,2%) e Rondônia (3,2%). Esses Estados também se destacaram na circulação de pessoas em estabelecimentos de consumo, mostram os dados do Google Mobility.

Vendas do varejo do Reino Unido sobem 0,3% em julho ante junho

A movimentação de consumidores chegou a aumentar 39% no Pará em relação ao padrão verificado no início de 2020. Em Roraima, a alta foi de 34%.

‘Pessoal voltou devagarinho’

A melhora nos negócios foi percebida pelo casal de comerciantes Oberdan Falcão, de 36 anos, e Fabíola Nogueira, de 35 anos. Eles têm uma loja de artigos esportivos no bairro de São Vicente, próximo ao centro de Boa Vista, capital de Roraima.

“Durante a pandemia teve restrição, ficamos acho que uns dois ou três meses fechados, teve lockdown“, relatou Fabíola. “Caiu muito a venda, muito mesmo. Conforme foi tendo a vacina, o pessoal voltou devagarinho. Agora a gente já recuperou, os clientes são ainda mais numerosos do que a gente tinha antes.”

O estabelecimento – que leva o nome da filha do casal, Andressa Sport Center, e existe há cerca de cinco anos – está faturando atualmente cerca de 30% mais do que antes da pandemia. As vendas têm como carro-chefe os uniformes de times de futebol. O artigo com mais saída é a camisa do clube carioca Flamengo.

“Hoje a gente vende umas 40 a 50 camisas do Flamengo por mês, às vezes até mais. Antes a gente vendia umas 25 camisas por mês”, contou Fabíola.

Segundo o economista Fabio Bentes, autor do estudo da CNC, os Estados da Região Norte têm menos acesso ao comércio eletrônico, e as liberações de renda extra pelo governo chegam mais diretamente ao varejo local.

“Sempre que você estimula a economia via transferência de renda, nesses Estados é como se o pessoal tirasse o pé da lama. No Rio de Janeiro e em São Paulo isso não faz tanta diferença assim, porque esses recursos se diluem numa economia que é mais desenvolvida. No Norte e no Nordeste, mesmo com uma inflação alta, se você libera recursos, historicamente, tende a se destacar esse comportamento. Na época do Bolsa Família isso acontecia também”, explicou Fabio Bentes.

Na média nacional, o volume vendido pelo varejo chegou a junho em nível 1,6% superior ao pré-pandemia. Mas o desempenho do comércio varejista de São Paulo estava 0,4% aquém do pré-covid, enquanto Rio de Janeiro ainda estava 5,6% abaixo.

O estudo da CNC mostrou ainda que São Paulo e Rio de Janeiro são as últimas Unidades da Federação no ranking de retomada da circulação de consumidores. Em São Paulo, a circulação de pessoas em estabelecimentos comerciais ainda está 12% aquém do pré-pandemia, e, no Rio, 9% aquém.

Trabalho remoto mais forte no Sudeste

Bentes explica que, no Sudeste, além de o comércio eletrônico ser mais difundido, a pandemia mudou hábitos de trabalho e de circulação de consumidores. Os trabalhadores de São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, têm maior propensão ao trabalho remoto. Isso reduziu a movimentação pelas regiões centrais das capitais.

“Para esses Estados, a retomada na circulação de consumidores no comércio vai levar mais tempo para ocorrer, o que não impede que as vendas do varejo cresçam, mesmo diante dessa nova realidade, que o diga a turma do comércio eletrônico”, ponderou Bentes.

O economista da CNC lembra que a evolução das vendas do comércio varejista vinha oscilando conforme as condições de consumo da população, mas também da gravidade da crise sanitária.

Os dados do IBGE mostram que as perdas mais intensas nas vendas em relação ao patamar de fevereiro de 2020, no pré-covid, acompanharam as fases de recrudescimento da pandemia. Foi o que aconteceu na segunda onda de casos, no primeiro trimestre de 2021, e na chegada da variante Ômicron no fim do ano passado.

Desde então, houve tendência de recuperação. Esse movimento foi ajudado também por medidas de injeção de recursos liberados pelo governo. Foi o caso dos saques extraordinários do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e da antecipação do 13º salário de aposentados e pensionistas do INSS. Neste início do segundo semestre, é esperado que o aumento no valor e no alcance do Auxílio Brasil impulsione o varejo.

Para Isabela Tavares, analista da Tendências Consultoria Integrada, o estímulo tende a beneficiar especialmente as vendas de alimentos. Turbinaria mais especificamente os resultados do segmento de supermercados. Isso porque os beneficiários do programa de transferência de renda do governo são as famílias mais vulneráveis.

“Isso acaba ajudando o orçamento das famílias de baixa renda, tanto para quitar dívidas e sobrar para o consumo quanto para o consumo direto”, disse Isabela. “Os impactos devem ser mais fortes nessas regiões Norte e Nordeste”, confirmou a economista, considerando que as regiões mencionadas possuem uma proporção maior da população beneficiária do Auxílio Brasil.

Recursos extras versus inflação e juros

De acordo com o Ministério da Cidadania, a Região Norte concentrou cerca de R$ 1,44 bilhão em pagamentos do Auxílio Brasil em agosto. Alcançou 2,4 milhões de famílias nos sete Estados. O resultado significa 274,1 mil concessões a mais que em julho. O Norte também é a região com o maior tíquete médio, R$ 613,21, ante uma média nacional de R$ 607,85. O Acre tem o valor médio mais elevado do Brasil: R$ 629,75 para cada família.

Em Roraima, o tíquete médio é de R$ 622,35. O ministério explica que o valor médio da região é mais elevado porque se soma a eventuais rendas complementares, como a Bolsa Esporte Escolar, a Bolsa de Iniciação Científica e a Inclusão Produtiva Rural.

Na Região Nordeste, o governo calcula que o Auxílio Brasil chegue a 9,4 milhões de famílias em agosto, totalizando R$ 5,63 bilhões em desembolsos. O valor médio por família na região é de R$ 607,86.

“Essa puxada (nas vendas do varejo) vinda do Norte do Brasil também, de certa forma, ajuda a explicar por que o comércio está crescendo pouco este ano ainda”, disse Fabio Bentes, lembrando que a região tem um peso modesto na formação da média nacional. “Sem falar nos fatores econômicos que não estão favoráveis: inflação alta, desemprego ainda elevado, juros em alta”, acrescentou.

A CNC espera que o varejo encerre o ano de 2022 com um crescimento de 1,7% no volume vendido. Já a Tendências Consultoria Integrada projeta um avanço de 1,8% este ano, seguido de expansão de 1,1% no ano que vem.

“No segundo semestre (de 2022) a gente tem expectativa que o varejo diminua o ritmo de crescimento”, previu Isabela Tavares.

Se o benefício tende a ajudar a venda de itens essenciais, o aumento da taxa de juros reduz o espaço para a aquisição de bens de consumo via crédito, especialmente os duráveis. Os efeitos defasados da política monetária, que elevou os juros para deter a inflação, se somam aos patamares já elevados de endividamento e inadimplência das famílias brasileiras.

Perda de fôlego

O cenário, que inclui ainda as incertezas do período eleitoral, deve se transformar em perda de fôlego do comércio varejista na virada do terceiro trimestre para o quarto trimestre deste ano. A estimativa é de Rodolpho Tobler, coordenador da Sondagem do Comércio no Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV).

“O comércio tem uma expectativa de, no curto prazo, ter um resultado favorável, mas, no médio e longo prazo, quando você olha mais para o final do ano, os fatores macroeconômicos devem prevalecer para uma variação mais negativa, uma certa desaceleração da economia”, projetou Tobler.

O Índice de Confiança do Comércio apurado pelo Ibre/FGV recuou 2,8 pontos em julho, para 95,1 pontos, após duas altas consecutivas. Segundo Tobler, a queda foi puxada pela piora da percepção tanto em relação à situação atual dos negócios quanto nas expectativas para os meses seguintes.

Embora as medidas recentes de estímulo adotadas pelo governo possam sustentar a demanda por mais alguns meses, os empresários estão cautelosos quanto ao futuro. Eles miram um cenário de inflação e juros elevados, além da confiança do consumidor em patamar baixo.

“O comércio ainda tem uma certa cautela sobre esse horizonte da segunda metade do ano”, concluiu Tobler.