Médicos têm recorrido à morfina e outros opioides para manejar a dor de pacientes com quadros graves da varíola dos macacos. Esses diagnósticos geralmente levam à internação e têm sido mais comuns em pessoas com lesões na região genital ou perianal. Outros casos raros também começam a surgir e podem levar à morte ou à cegueira com inflamações do pulmão, do cérebro e das córneas.

Tratando casos da monkeypox no pronto-socorro do Hospital Emílio Ribas desde os primeiros registros em São Paulo (e no Brasil), o infectologista Fábio Araújo estima que 10 a 20% dos pacientes que passaram por lá foram considerados “graves”. Segundo o balanço mais recente da Organização Mundial da Saúde (OMS), 7,8% de todos os casos relatados até hoje levaram à hospitalização. Para ser classificado assim, o quadro pode ser caracterizado por uma ou mais lesões que aumentam de tamanho a ponto de a dor ser descrita como insuportável.

Nesses casos, o uso de paracetamol ou analgésicos clássicos como a dipirona e o tylenol não surte efeito e a maioria dos pacientes precisa receber morfina ou outro opioide como o tramadol (vendido apenas sob prescrição médica) de forma intravenosa. “Hoje, o que define mais comumente como quadro grave é a dor que não pode ser controlada com analgésicos orais. Pela experiência, já estamos utilizando alguns mais fortes porque sabemos que os do cotidiano não têm funcionado”, explica Araújo.

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“A resposta que os analgésicos têm nos casos graves é bastante pobre e frustrante”, aponta o infectologista Rico Vasconcelos, do Hospital das Clínicas. “A opção de escalar para os opioides, como codeína e tramadol, também é uma ideia ruim se for caso de lesão anal ou perianal, porque eles podem causar eventos adversos como a obstipação (ressecamento das fezes). Ao tentarmos tirar a dor do paciente, ele acaba tendo mais.”

As preocupações de Vasconcelos não são infundadas. Dados do Dados do Ministério da Saúde apontam que quase 60% dos pacientes registrados até agora apresentaram ferida genital. Já os médicos relatam que os casos graves da varíola dos macacos estão comumente associados às lesões nessa região, na perianal e, principalmente, anal. “São essas que levam mais o paciente para a dor incurável e intratável”, aponta Araújo.

Ele relata ter visto uma prevalência desses quadros entre pessoas vivendo com HIV, que correspondem a 41% dos pacientes mapeados pela OMS, ou com alguma forma de comprometimento do sistema imunológico, como tratamento prévio por radio ou quimioterapia e recém-transplantados, como era o caso da primeira vítima fatal da doença no País. Outras populações vulneráveis são os extremos de idades, crianças ou idosos, e gestantes, em quem o vírus pode induzir ao aborto e causar má formação dos fetos.

‘Cacos de vidro espalhados pela boca’

O advogado João Pinheiro, de 31 anos, não tem nenhuma das comorbidades mencionadas acima, mas descreveu a dor de uma ferida da monkeypox no seu lábio inferior como “ter cacos de vidro espalhados pela boca e um alicate apertando”. A lesão começou no terceiro dia após o surgimento dos primeiros sintomas e, a princípio, foi confundida como um afta. Durante a consulta em um hospital privado de São Paulo, ele foi orientado a tomar medicamentos para a dor em casa.

Menos de uma semana depois, Pinheiro voltou ao mesmo hospital com a ferida agora quase cinco vezes maior e a dor que classificou como “estrondosa”. “Você não consegue pensar em mais nada, não tem dignidade, não tem energia. É só dor”, conta.

João precisou tomar morfina nas veias por três dias seguidos para aguentar essa dor, que se espalhava do lábio pelo resto do corpo. “Ela começou a melhorar no segundo dia, mas quando diminuíam as doses, atacava de novo.” Catorze dias após o início dos sintomas e cinco depois de ser internado, ele recebeu alta para continuar o restante do tratamento de casa.

“Desde o princípio, temos dito para os pacientes que o que melhora mesmo é o tempo”, aponta Vasconcellos. “Parece que a doença tem seu curso e vai segui-lo apesar do que você fizer.”

Faltam remédios específicos para a varíola dos macacos

Ainda não há acesso a remédios específicos contra a varíola dos macacos ou expectativa de receber doses suficientes para atender a uma grande demanda. Na última sexta-feira, 19, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) dispensou a obrigação do registro de importação para medicamentos e vacinas relacionados à varíola dos macacos, em uma tentativa de acelerar o acesso do Brasil às poucas doses disponíveis no mundo. “Uma coisa é sabermos os medicamentos e a outra é como conseguí-los”, explica o infectologista David Uip, secretário de Ciência, Pesquisa e Desenvolvimento em Saúde do Estado de São Paulo.

A situação, ele aponta, é da mesma escassez de ferramentas próprias que o Brasil sofreu para combater o coronavírus. Ao longo da pandemia, o País dependeu da importação de insumos e doses, enquanto o desenvolvimento de tecnologias brasileiras até hoje não saiu do papel. No caso da monkeypox, o cenário é agravado pela falta de fármacos voltados especificamente para este tipo do vírus, uma vez que a única vacina e o único medicamente foram criados para tratar a varíola humana (smallpox).

Com isso, o enfrentamento à varíola dos macacos no Brasil volta a depender do fundo rotatório da Opas, braço da OMS na América Latina, para ter vacinas e medicamentos indicados para a doença. O principal desafio é que, novamente, há uma “alta demanda em muitos países”, como lembrou o diretor-geral da OMS em seu último pronunciamento sobre o surto, na quarta-feira, 17.

Em coletiva de imprensa na última segunda-feira, 22, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, afirmou que “o fato de não existir um tratamento específico não quer dizer que não tenha tratamento” possível para a doença. “Até porque o tratamento pode ser pra melhorar sintomas, dor. Relata-se que a dor provocada por essas bolhas e feridas pode ser forte.”

“Estamos atrás desses medicamentos e tentando entrar em contato com as indústrias que produzem e as que importam”, explica Uip, acrescentando que o esforço tem sido em conjunto com o Ministério da Saúde e o governo federal, com foco inicialmente voltado para atender os pacientes mais graves da doença. “Mas temos indústrias muito produtivas em São Paulo, por exemplo, não podemos depender de outros países todas as vezes e estar sempre correndo atrás do prejuízo.”

Inflamações do cérebro, pulmão e córneas

Alguns casos raros de varíola dos macacos não podem depender apenas do passar do tempo. Enquanto os “graves” ainda são minoria, a doença já se manifestou em pelo menos outros três quadros “fora da curva”, com evolução de inflamações no cérebro (encefalite), pulmão (pneumonite) e córneas (ceratite), também mencionados na literatura internacional sobre o novo surto.

Para esses pacientes nos quais os sintomas e desdobramentos da doença podem colocar a vida ou a visão em risco, os governos estadual e federal têm tentado importar doses específicas por meio do “uso compassivo”. “Estamos tentando fazer esse apelo pela gravidade dos pacientes. Nesses casos, que são diferentes das compras regulares, o remédio é doado pela empresa com uso específico”, explica Uip.

Na lista de pedidos para “uso compassivo”, estão três remédios: o Tecovirimat, desenvolvido para a varíola humana mas recomendado pela OMS – a Opas, braço da entidade para a América Latina, prometeu 50 doses desse tipo ao Brasil; o antiviral Brincidofovir, usado contra outros vírus do tipo Orthopoxvirus; e o Cidofovir, que também existe na forma de colírio e é mais utilizado para complicações oftalmológicas em pacientes com HIV/Aids.

Apesar de não terem recomendação específica pela OMS ou registro na Anvisa, a FDA (Food and Drugs Administration, agência reguladora dos Estados Unidos criou protocolos recentes para o uso de ambos em pacientes da varíola dos macacos, alertando também que eles podem causar efeitos adversos. “Nosso objetivo é manejar a dor e o conforto, com cuidados locais, para preservar a vida do paciente e depois diminuir dores e sintomas”, explica Uip. “Mas esse vírus ainda vai trazer surpresas.”

Na coletiva da última segunda-feira, Socorro Gross, representante da OPAS e da OMS no Brasil, frisou que não há evidências específicas e de longo prazo do remédio e da vacina em pacientes da monkeypox. “Nesse momento, os países que estão utilizando a vacina estão desenvolvendo evidências para identificar realmente a efetividade para esse vírus, que é da família dos Orthopox, mas é diferente”, explicou.

Hoje, o Brasil é o 3.º país do mundo com mais casos da varíola dos macacos, com 3.896 pacientes confirmados da doença, segundo o balanço mais atualizado desta terça-feira, 23.