11/02/2004 - 8:00
“A ministra Dilma disse que a tarifa cairá. Isso não é verdade, pois os custos vão subir”
“Energia se presta a demagogias. O Itamar comprimiu a tarifa e quase quebrou o setor”
DINHEIRO ? O governo acaba de regulamentar o setor elétrico. A conta de luz vai aumentar?
David Zylbersztajn ? Quando a ministra Dilma Roussef fala que vai abaixar, não é verdade. Não vai baixar. Primeiro porque não vejo nada que possa provocar essa redução de preço. Segundo porque há crescimento contínuo do custo de produção. A questão da conta de luz não é o custo da energia. Não esqueça que, da conta de luz paga no Brasil, 70% a 75% são penduricalhos que nada têm a ver com o custo da geração. É o ICMS, o seguro apagão, etc. A carga tributária é enorme. Os governos preferem taxar o ICMS alto na conta de luz, porque assim é impossível sonegá-lo. Isso provoca distorções.
DINHEIRO ? Que tipo de distorção?
Zylbersztajn ? Se a empresa fatura a conta e a pessoa não paga, o ICMS é recolhido da mesma forma. Imagine a situação da Light, que, em função da inadimplência, tem um prazo de pagamento de 90 dias.
DINHEIRO ? Qual sua avaliação sobre a regulamentação do setor elétrico?
Zylbersztajn ? Há problemas de forma e conteúdo. O discurso é tarifa baixa e universalização da energia. É um discurso óbvio e antigo, de antes do Juscelino. Além disso, não houve debate público e nem com o Congresso. Esse pessoal era cheio das idéias, cheio das propostas. Eu achei que no dia 1 de janeiro de 2003 estaria tudo pronto. Aí eles passaram um ano preparando um modelo. De repente vem a pressa, soltam uma medida provisória e votam a toque de caixa. Por mais que sejam brilhantes nossos deputados e tenham uma capacidade de assimilação estupenda, não é possível votar desse jeito. Nove entre dez deputados não têm a menor idéia do que votaram. É uma irresponsabilidade geral.
DINHEIRO ? E quanto ao conteúdo, quais são suas críticas?
Zylbersztajn ? É um conjunto de intenções. Não prevê itens que deveriam ser previstos em lei e remete essas questões para decretos, portarias, etc. Uma concessão nessa área é coisa de 30 anos. São sete governos. Então, não adianta uma canetada da atual ministra se daqui a quatro anos uma outra ministra pode mudar tudo também com uma canetada. O instrumento regulatório dessa medida provisória é extremamente frágil em termos de segurança para o investidor.
DINHEIRO ? Por quê?
Zylbersztajn ? A ministra Dilma e o presidente Lula disseram
que tudo que está aí não serve. Criaram o apagão da incerteza,
pois tiraram algo estabelecido e não colocaram nada no lugar.
Isso assusta o investidor.
DINHEIRO ? Mas só o interesse do investidor que deve ser contemplado?
Zylbersztajn ? O discurso do governo é de atração, mas a prática, não. Eu costumo dizer que quando nós queremos pegar a galinha não gritamos ?xô, galinha!?. Mas foi o que o governo fez. O curioso é que o governo quer investimentos privados. Aliás, ele precisa desses investimentos. O governo precisa, e muito, atrair para a expansão no fornecimento de energia. No orçamento, há previsão de investimentos de R$ 7 bilhões para toda infra-estrutura. Se o País crescer 3,5% a 4%, como o próprio governo diz, serão necessários R$ 15 bilhões para a energia elétrica ? R$ 10 bilhões de investi-
mentos em geração e uns R$ 5 bilhões em transmissão e distribuição. Do governo, esse dinheiro não virá. Tem que vir do setor privado. A Eletrobrás tem algo como
R$ 4 bilhões a 5 bilhões. De onde virão
os outros R$ 10 bilhões?
DINHEIRO ? Quais os pontos que mais assustam esses investidores?
Zylbersztajn ? O mais preocupante não é o que há na regulamentação, mas o que não há. Falta, por exemplo, a definição sobre o cálculo da tarifa, e ninguém faz investimentos se não tiver clareza sobre isso. Outra: existe um espírito forte de direcionamento do Estado. É aquela parceria: você entra com o dinheiro e eu falo o que fazer com ele. Acho pouco provável que o setor privado aceite isso. Você não vê ninguém falando bem. Não falam mal por certo receio. Hoje a maioria das empresas do setor continua à venda. Ninguém falou: agora eu não vendo mais. Ao contrário. É um cenário pouco favorável para investimentos.
DINHEIRO ? Isso poderia ser interpretado como uma crítica de alguém ligado a um partido de oposição, no caso o PSDB.
Zylbersztajn ? Eu não estou me regozijando. Hoje eu vivo de investimentos do setor. E o País só vai crescer com o setor elétrico saudável, pois isso vai gerar investimentos e me trazer novos negócios. Não estou politizando a questão. A crítica que faço é que terminando este governo qualquer outro pode mudar tudo novamente.
DINHEIRO ? O sr. participou de um governo em que houve racionamento e as empresas acabaram quebradas.
Zylbersztajn ? O modelo não foi implementado ? e o que foi implementado foi mal implementado. A geração de energia deveria ser privatizada e não foi. Então criaram-se situações esdrúxulas, como a do Operador Nacional de Sistema. É um órgão privado, mas no qual 80% dos associados são estatais. Se há erros, que sejam corrigidos. O governo anterior também perdeu a oportunidade de regulamentar o Proinfa e incentivar fontes alternativas de energia, como as Pequenas Centrais Hidrelétricas, a aeólica, a biomassa, a solar. O governo atual deixou passar um ano e também não regulamentou. Editou três decretos, dois estabelecendo datas e o terceiro, com data indeterminada. No mundo inteiro se dá subsídios a essas energias e é o correto, pelo efeito social positivo.
DINHEIRO ? O que o sr. acha da decisão do governo de não privatizar a geração de energia?
Zylbersztajn ? É um debate inócuo. Já não houve privatização no governo passado e, além disso, ninguém quer comprar. Não adianta oferecer. Fui num seminário em que o Luiz Pinguelli Rosa (presidente da Eletrobrás) disse: ?Não se iludam que esse governo não vai privatizar?. É uma conversa de maluco, pois ninguém quer comprar. Mesmo o que foi privatizado está à venda. Não tem comprador. O melhor seria criar condições para o setor privado investir na geração de energia nova, não privatizar o que já existe.
DINHEIRO ? Qual o impacto dessa situação na economia?
Zylbersztajn ? Alguém disse que a energia é a mãe de toda a infra-estrutura. Então quando uma empresa vai estudar investimentos em qualquer setor, a primeira pergunta que faz é: tem energia? Ao perceber a situação caótica, já recua. Então o impacto é imenso. Então tomara que o governo esteja certo, e eu esteja errado. Mas garanto que estamos no mínimo em uma situação de incerteza. Existe um sentimento dentro do governo de que o investidor prefere a garantia do governo ao risco de mercado. É um equívoco. Quem está no governo (e eu já passei por isso) tende a ser um pouco megalomaníaco. Mas o governo não pode tudo.
DINHEIRO ? Como isso se manifesta?
Zylbersztajn ? O governo tirou poder da Agência Nacional de Energia Elétrica, Aneel, e transferiu para ele na ilusão de que isso atrai o investidor. Ao contrário. A Aneel é apenas gestora de contrato e promotora da concorrência no setor. Então, ela precisa ter credibilidade e independência. E isso passa pela não-ingerência política. O poder excessivo do governo politiza as decisões e afugenta o investidor. Esse setor é dado a muita demagogia, e o investidor sabe disso. No governo Itamar Franco, houve uma compressão tarifária que num primeiro momento fez a alegria da criançada e depois quase quebrou o setor. O governo Lula não se perguntou: como podemos fazer para a sociedade ser bem atendida na questão da energia? É isso e não achar que tem de mandar em tudo.
DINHEIRO ? O sr. acha que o estilo assertivo da ministra Dilma tem a ver com essa posição?
Zylbersztajn ? Eu não a conheço pessoalmente. Ela é um ser político, não tem história dentro do setor, mas também não acho isso um problema. E também há diversas linhas de pensamento no governo a respeito desse tema.
DINHEIRO ? Eles não conversam internamente?
Zylbersztajn ? Aparentemente não. Participei recentemente de um debate na Fundação Getúlio Vargas e havia um pessoal do governo que apresentou os princípios da regulamentação. É um estudo muito bom, mas contraria a MP. O documento garante a independência do órgão regulador, ao contrário do que faz a MP. A função da Aneel é de dirimir dúvidas e arbitrar conflitos. Sem isso ela nem precisa existir.
DINHEIRO ? Existe um risco de apagão?
Zylbersztajn ? Acho que sim. Em janeiro, se não fossem as térmicas, tão criticadas pelos ex-oposicionistas e atuais governantes, teríamos chegado perto do racionamento no Nordeste. Mais 15 dias de seca na região e a situação seria crítica. No geral, a situação é menos complicada do que no passado. Há um projeto de expansão de gás e um parque de térmicas instalado. Pode-se falar o que quiser dos erros do governo passado, mas a realidade é que tivemos, antes do racionamento, a pior hidrologia dos últimos 70 anos. Foi um risco semelhante ao que tivemos agora há um mês e que diminuiu com as chuvas de janeiro, embora não esteja inteiramente afastado porque no ano do racionamento tivemos chuva em janeiro e depois parou. Outro ponto positivo é que população está consumindo menos. Ela aprendeu a economizar e parte da economia é permanente. O racionamento depende de vários fatores. O próprio governo fala em risco já em 2007. O Pinguelli chegou a falar em 2006. Mas obras para daqui a dois, três anos deveriam estar sendo iniciadas agora. O período de maturação mínimo é das termoelétricas, que não se coloca em funcionamento antes de dois anos.
DINHEIRO ? O sr. faria um acordo com a AES nos moldes em que o BNDES fez?
Zylbersztajn ? Falar de fora é fácil. Mas não responderei como alguém da oposição no passado. Certamente eles diriam que é uma vergonha, etc. Imagine um acordo em que houve um perdão de US$ 900 milhões e vira sócio da empresa. Eu faria diferente. Eu trans-
formaria a AES em empresa de utilidade pública, nem estatal, nem privada. O capital seria pulverizado. Haveria posições relevantes no capital, mas não dominantes. Perdeu-se uma oportunidade de ouro. Seria um efeito demonstração incrível. Não seria necessário socializar o prejuízo privado, como ocorreu na AES. Mas o governo dizer que ia vender as ações que tinha como garantia. Bobagem. Ninguém com-
praria e a AES sabia disso. Assim como sabia que o governo não podia deixar a empresa parar. Por isso puxou a corda até onde pôde.